Os caminhos da liberdade

Correspondência

01.08.11

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Caro José Geraldo,

Eu não cheguei a ser um completo marxista porque, quando estudante e funcionário e sindicalista na Petrobras (isso aos 22 anos), entrei para a Ação Popular, fundada por Betinho (Herbert José de Souza), se não me engano. Mas não saberia dizer agora qual era a ideologia da AP, parece que um socialismo dissidente do marxismo, com origem no que seria uma esquerda cristã. Embora de cristão eu já não tivesse mais nada. E o que mais contribuiu para que eu repelisse a Igreja Católica foi ter estudado num colégio dos irmãos maristas.

E vou fazer uma confissão. Quando fui demitido da Petrobras por subversão, logo após o Golpe de 64, houve um lado meu que se sentiu aliviado. Como não fui preso ou sofri violências físicas, pensei: agora, quem sabe, vou poder escrever. E, de fato, tendo o meu pai amigos influentes, consegui um emprego na Justiça do Trabalho, de meio horário, tudo o que um aspirante a escritor poderia pedir.

Mas continuava um cara de esquerda, só que tomando mais cuidado, até porque já havia nascido meu filho André. Ao me formar em Direito, consegui uma bolsa de estudos no Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Paris, no ano letivo 67/68. E quando explodiram as manifestações políticas de maio de 68, percebi nelas, mais do um desejo de revolução marxista, uma luta libertária, utópica e até meio irresponsável. Mas mexeu comigo, Zé. Ao assistir aos enfrentamentos no Quartier Latin, as bandeiras pretas (anarquistas) e vermelhas (comunistas) hasteadas lado lado nos prédios públicos da capital francesa, tomados pelos estudantes, minha pele arrepiava. E comecei a desconfiar do que hoje tenho certeza: maio de 68 em Paris, e também em Berlim, traduziam aspirações antiburguesas e libertárias e, em suas palavras de ordem, e principalmente na indisciplina generalizada, havia também uma crítica contundente ao centralismo soviético, à ditadura do Partido Comunista. Pode-se dizer que o muro de Berlim começou a cair em maio de 1968.

Interessante que, em abril do mesmo ano, eu estivera com minha mulher e filho em Praga. Minha escolha de visitar a Tchecoslováquia se deu, principalmente, porque eu queria conhecer um país comunista. Mas a história caminha às vezes por ziguezagues e estivemos na Tchecoslováquia justamente na Primavera de Praga e não havia como não simpatizar com as aspirações democráticas do povo tcheco, isso uns quatro ou cinco meses antes de os russos invadirem tudo.

Mas onde quero chegar, Zé, é que depois de tudo passado, enxerguei uma enorme semelhança entre a juventude tcheca e francesa. O que havia em ambos movimentos – na França de maneira irreal e utópica – era uma luta pela liberdade.

Essa estadia de um ano na Europa fortaleceu minhas convicções democráticas e até libertárias. Agora imagine, Zé, um jovem de 27 anos voltando ao Brasil em junho de 68 e encontrando aqui o governo do Marechal Costa e Silva e, um pouco depois, com a morte dele, o triunvirato militar, o ato institucional número 5 e, a seguir o brutal governo Médici.

Foi como ter subido a um trampolim e depois mergulhado de cabeça num passado negro. Não voltei a participar de grupos organizados, mas ajudei, dentro dos meus limites e possibilidades, escondendo uma ou outra pessoa, a luta contra a ditadura. Não me envolvi com a arriscadíssima e já provavelmente inútil luta armada, embora tenha conseguido, com minha mulher, esconder um guerrilheiro que participara de um assalto a banco.

Nessa época, comecei a escrever para valer e, em meus primeiros livros (principalmente o segundo e o terceiro), pode ser encontrado esse tipo de resistência, talvez inútil, que é a artística. Minha obra, inclusive, tinha uma certa radicalidade vanguardista que, naquele momento, podia ser considerada como fruto de minha experiência no exterior, até porque, em 70/71, participei do International Writing Program, na Universidade de Iowa, reunindo escritores de todos os continenentes, dos países capitalistas e socialistas. Uma formidável Babel e ainda pude conviver com a juventude americana da era do rock, do sonho, acompanhando suas aspirações também libertárias e utópicas, sua luta contra a guerra do Vietnã.

Perdoe-me, Zé, se esta resposta às suas vivências políticas tornou-se bastante pessoal. Mas foi o que aconteceu comigo (e que bom!). E, aliás, apesar da ditadura militar, que ainda perdurou até a anistia, via-se nos jovens brasileiros o desejo de viver sua época existencialmente tão rica no mundo inteiro, o que conseguiram em boa parte.

No mais, hoje vivo a minha vida meio reclusa de escritor, mas como na música The Boxer, de Simon & Garfunkel, depois de mudanças e mudanças a gente permanece mais ou menos o mesmo. E mantenho aceso o desejo de contribuir com alguma coisa nova e radical na literatura.

Mas não vou deixar de responder à sua pergunta futebolística: o que achei de Elano batendo e perdendo o pênalti com uma cavadinha contra o Flamengo naquele memorável 5 a 4 para o Fla? Você sabe, tanto como eu, que ele quis se redimir com uma jogada de categoria daquele pênalti que cobrou grosseiramente no jogo contra o Paraguai, na Copa América. Elano quis dar uma de Neymar e deu no que deu. Mas o importante naquele jogo é que voltamos a ver o futebol brasileiro cheio de fantasia.

Um grande abraço. Sérgio.

 

* Na imagem da home que ilustra este post, um dos cartazes que compuseram os protestos de maio de 1968, na França

 

 

 

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