No inferno com Polanski

No cinema

09.06.12

Deus da carnificina, o novo filme de Roman Polanski, é uma comédia cruel sobre a fina camada de civilização que encobre a barbárie do homem moderno. A ação se concentra toda num apartamento de classe média alta no Brooklyn nova-iorquino, onde dois casais discutem a agressão violenta do filho de um dos casais ao filho do outro.

A origem teatral do texto – a peça homônima da francesa Yasmina Reza – e seu caráter de lavagem de roupa suja entre quatro paredes levaram muitos críticos a mencionar a tradição dos claustrofóbicos psicodramas americanos de Eugene O’Neil, Tennessee Williams e Edward Albee. (A linhagem se estende até o David Mamet de Oleanna e O sucesso a qualquer preço.)

Da paz doméstica ao pesadelo

A associação é pertinente, mas desde as primeiras cenas de Deus da carnificina o filme que me ocorreu (talvez eu devesse dizer que me assombrou, como um fantasma) foi O anjo exterminador. Calma. Não há comparação possível entre a obra-prima de Buñuel e este filme menor de Polanski. A não ser num aspecto: a argúcia com que ambos mostram que a fragilidade da camada de civilização citada acima tem a ver com uma certa ordenação do tempo e do espaço. Aqui, uma cena chave de O anjo exterminador:

No início de Deus da carnificina, a conversa entre o casal Longstreet (Jodie Foster e John C. Reilly) e o casal Cowan (Kate Winslet e Christoph Waltz) se desenvolve educadamente e com um grau aceitável de tensão e desconforto até que os Cowan se despedem e os Longstreet os acompanham até o elevador. Mas algum minúsculo desentendimento de última hora faz com que os anfitriões convidem os visitantes a entrar de novo para resolver a questão.

Pronto. Isso basta para atiçar drasticamente a inquietação do espectador e elevar o drama a outro patamar, quase a outra dimensão. Por quê? Porque no fundo desejávamos que o casal visitante fosse logo embora, e já estávamos quase suspirando de alívio ao ver os Longstreet entrando no elevador. Ansiávamos pela paz doméstica, e eis que a dilatação do tempo, conjugada com a contração do espaço, nos faz penetrar em pleno pesadelo.

Os críticos, ao menos no Brasil, têm sido um tanto duros com o filme. Alguns, por esperar sempre mais de um cineasta que nos deu obras fortíssimas, como A faca na água, Repulsa ao sexo, O bebê de RosemaryChinatown e O inquilino. Outros, por considerar que Polanski não realizou a contento a travessia do palco para a tela, deixando artificiais certos diálogos e certas viradas dramáticas. Outros ainda, por considerar superficial o próprio texto de origem.

Geometria dos olhares

Pode ser que tenham razão. Não tive muito tempo de reparar nessas fragilidades, pois me entretive com a perícia com que Polanski simulou uma narrativa “em tempo real” condensando em 1h15 uma ação que teria durado várias horas – algo semelhante ao que Hitchcock fez (com muito mais brilho, é verdade) em Festim diabólico (1948). E me deixei levar também pela habilidade do diretor em orquestrar a geometria dos olhares, compondo um sutil e cambiante jogo de alianças e confrontos entre os personagens.

Não há nada de teatral na encenação, à parte o fato de tudo se passar num único espaço. A câmera está sempre onde deve estar para que nós, espectadores, saibamos o que cada personagem mostra para alguns e esconde de outros. O talento dos atores ajuda muito, é claro. Nesta cena (infelizmente sem legendas), esboça-se uma cumplicidade – provisória – entre os homens, enquanto cresce a fúria das mulheres:

http://www.youtube.com/watch?v=Kxs7iOHtPIA

O desconforto dos personagens, em última análise, é o nosso próprio desconforto, pois a todo momento somos levados a contemplar nossas próprias fraquezas, vaidades e patifarias. O que alivia é o humor – negro, perverso, polanskiano, mas ainda assim libertador. Como a dizer que, se formos capazes de rir de nós mesmos, talvez ainda haja salvação.

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