O cinema essencial de Lav Diaz

No cinema

19.02.16

Recomendar filmes filipinos de mais de quatro ou cinco horas de duração, exibidos à margem do circuito comercial? O leitor desavisado pode estranhar, mas é isso mesmo que vou fazer aqui. Mais que isso: digo que é uma chance rara proporcionada aos cinéfilos de São Paulo e do Rio de vivenciar um cinema ao mesmo tempo substancioso e cristalino, uma oportunidade de lavar nossos olhos congestionados pela profusão de imagens vazias, arejar o cérebro atulhado por fórmulas e clichês.

Estou falando de Lav Diaz, que tem seus dois longas-metragens mais recentes exibidos no Instituto Moreira Salles, no Rio, e no Centro Cultural São Paulo. São eles Norte, o fim da história (2013), atualmente em cartaz, e Do que vem antes (2014), que estreia na próxima quinta, 25.

Porta de entrada

Norte é uma belíssima porta de entrada ao universo e à estética do diretor filipino. É também um de seus filmes mais curtos: tem “apenas” quatro horas e dez minutos.

Seu enredo não é propriamente uma história, mas um feixe de histórias e personagens que eventualmente se entrelaçam. Há sobretudo dois homens, ainda jovens, mas já bastante marcados pela vida. Um deles, Fabian (Sid Lucero), é um desocupado niilista de classe média, que interrompeu no meio o curso de direito; o outro, Joaquin (Archie Alemania), é um trabalhador pobre temporariamente privado de trabalho por conta de uma contusão. Não se conhecem, mas uma personagem os liga: uma gananciosa agiota a quem ambos devem dinheiro.

As trajetórias de Joaquin e Fabian, com seus respectivos círculos de relações (família, amigos), são mostradas paralelamente e sem pressa, num ritmo compassivo e envolvente, contrastando, grosso modo, o mundo das ideias (Fabian) e o da crua realidade cotidiana (Joaquin), numa tensão crescente que explode num duplo assassinato claramente inspirado em Crime e castigo. Um dos dois homens é injustamente incriminado e vai para o presídio; o outro passa a viver assolado pela culpa.

Épico dos destinos miúdos

Em torno desse esqueleto narrativo Diaz erige um épico dos pequenos destinos, em que a realidade de seu país entra “naturalmente” por todos os lados, do desemprego à urbanização incompleta das cidades, da estratificação social pelo uso das línguas (filipino na fala do povo, inglês na alta roda, na lei e nas instituições) à brutalidade do sistema penal. Muitas dessas coisas são familiares a nós, brasileiros.

Mas o que conduz a narrativa, seu “norte”, para jogar com o título, são os dilemas e opções morais dos personagens a cada momento. Nesse aspecto, o filme desconcerta sistematicamente o espectador habituado aos esquemas dramáticos habituais. Não apenas porque as atitudes dos personagens são muitas vezes inesperadas, mas principalmente porque sua encenação foge à construção clássica que induz uma ideia de causalidade. Aqui, parece que os próprios personagens não sabem o que vão fazer em seguida. Parecem descobrir seu destino junto conosco.

Num dado momento, por exemplo, uma mulher imersa numa situação desesperadora, mas sem que isso seja sublinhado por nenhum artifício de atuação ou mise-en-scène, vai com os filhos pequenos até a beira de um penhasco. Há alguns minutos de tensão e incerteza quase insuportáveis, com a câmera imóvel, até o desfecho sublime da cena.

Em planos geralmente longos e abertos, com foco profundo e escassos movimentos de câmera (a não ser nas cenas de sonho), enquadrando os atores a média distância, Diaz deixa o espectador passear seu olhar pelo quadro e perceber o valor de cada elemento. O próprio assassinato duplo que é o ápice dramático da primeira parte ocorre predominantemente fora do quadro. Somos nós que o completamos, de certa forma.

Beleza viva

Com um senso aparentemente inato de enquadramento e composição, Diaz refuta a beleza pré-cinematográfica da paisagem e incorpora a sujeira, a feiura, o “ruído” e o acaso na construção de uma beleza de outra ordem, viva, pulsante. (Não por acaso, galinhas, cachorros, cabras e búfalos convivem com os humanos no mesmo espaço, entrando e saindo do quadro a seu bel-prazer.) Não busca a imagem “bonita”, mas a imagem justa, íntegra, necessária. Parece realizar em cinema os célebres versos de John Keats: “Beauty is truth, truth beauty, – that is all/ ye know on earth, and all ye need to know”.

Do que vem antes

As mesmas qualidades aparecem, ampliadas e enriquecidas, no longa seguinte, Do que vem antes, dirigido, fotografado (em preto e branco) e montado por Diaz, com cinco horas e meia de duração. Ganhou o prêmio de melhor filme no festival de Locarno e não hesito em dizer que é uma das obras-primas da década.

Acompanhamos o dia a dia de um remoto povoado à beira-mar, com seus pescadores, sitiantes e artesãos que, a despeito das roupas contemporâneas e do letreiro que indica estarmos em 1970, parecem viver exatamente como viviam séculos atrás. Mas aos poucos, nessa comunidade fora do tempo, ou antes regida pelo tempo cíclico (as estações, as monções, as marés), infiltra-se a temporalidade linear da história, notadamente a implantação da ditadura de Ferdinando Marcos.

O nome do ditador só é citado, ainda assim de passagem, depois de mais de três horas de filme. É, de início, muito sutil e insidiosa a infiltração da história nesse ambiente rural. Torna-se brusca, para não dizer brutal, quando um destacamento do exército acampa atrás da escola local, sob o argumento de que a área está infestada de guerrilheiros anti-Marcos.

Mas a essa altura já estamos plenamente envolvidos com os dramas, revelados aos poucos, do punhado de moradores: a abnegada Itang (Hazel Orencio), que cuida de Joselina (Karenina Haniel), sua jovem irmã doente mental, que o povo local acredita ter poderes de cura; o viúvo Sito (Perry Dizon), que vive com seu enigmático filho adotivo, Hakob (Reynan Abcede); o padre que vem periodicamente à aldeia rezar missas e ouvir confissões; o produtor de vinhos; a mascate (Mailes Kanapi) que traz novidades da cidade para vender etc.

Sincretismo e mistério

Todos eles têm facetas ocultas, zonas de sombra que somos instigados a investigar junto com o filme. Por meio dessa busca, descobrimos uma realidade social e humana complexa, de equilíbrio precário, em que um papel importante é desempenhado pelo sincretismo religioso, isto é, por um catolicismo mesclado com crenças animistas de origem obscura e ancestral. (Aqui também os brasileiros hão de se identificar.)

Nos planos longos de Lav Diaz, é muito frequente um personagem entrar em quadro pequenino, lá no fundo, e vir crescendo em direção à câmera, ao cenário ou aos outros personagens. Depois sai de quadro de novo e a câmera permanece fixa, como a afirmar que o que mais conta é o espaço, o ambiente, a paisagem física e humana. Diz o próprio cineasta: “Procurar locações é uma parte importante do processo. A partir do momento em que decido filmar em determinado local, ele se torna parte fundamental do meu planejamento estético e ajuda a moldar a narrativa e os personagens. Valorizo o espaço físico como um elemento importante. A natureza é uma grande atriz em meu cinema”.

Em Do que vem antes, Diaz tira máximo proveito dramático e narrativo de cada aspecto da paisagem: os rochedos açoitados violentamente pelas ondas, a mata frondosa, os rios, pastos, plantações de arroz, engenhos, oficinas, barracos. Do mesmo modo, os elementos: a chuva, os ventos, o fogo. Nesse mundo enganosamente bucólico desenvolvem-se tragédias surdas, tensões subterrâneas, violências indescritíveis, análogas, de certa forma às das comunidades perversas apresentadas em obras tão díspares como Dogville ou A fita branca.

Em contraste com os filmes de Lars von Trier e Michael Haneke citados, o estilo de Lav Diaz é mais austero, íntegro e translúcido. Não há nenhuma música, nenhuma ênfase, nenhum campo/contracampo que induza à projeção ou à identificação emocional. Elipses temporais e espaciais ocultam da nossa visão os momentos de brutalidade mais crua, o que não diminui em nada o impacto das cenas, sejam elas de assassinato, tortura ou abuso sexual.

Diaz não edulcora o mal (social, político, moral), mas tampouco se regozija em sua exibição. Não é um pregador, nem um entertainer. É um artista, e dos grandes.

Em tempo: está em cartaz, também no IMS, outro filme inspirado em Dostoiévski (no caso, em Noites brancas, que já tinha sido filmado por Visconti), Noites brancas no píer, de Paul Vecchiali, sobre o qual escrevi aqui quando foi lançado.

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