O cinema libertário de Buñuel

No cinema

02.03.15

Luis Buñuel (1900-83) foi um dos raros artistas a criar um continente próprio, pessoal e intransferível, no planeta do cinema. A proeza lhe valeu a admiração unânime de seus pares: para Bergman, ele foi um dos maiores; para Fellini, simplesmente “o” maior.

Cena de Um cão andaluz.

A partir desta terça (3 de março), os paulistanos terão a chance de conhecer as múltiplas faces e a coerência essencial dessa obra ímpar, na mostra dedicada a Buñuel dentro do projeto Tela Clássica, no Sesc Pinheiros. Aqui a programação completa.

Até o final do mês, sempre às terças-feiras, em sessões gratuitas, serão exibidos apenas seis filmes, mas escolhidos a dedo de modo a cobrir todas as fases da carreira do autor, desenvolvida na França, na Espanha e no México. A ordem cronológica da exibição permite delinear claramente essa trajetória singular.

Subversão e poesia

Já nas célebres primeiras imagens de seu primeiro curta, Um cão andaluz (1929) – um olho cortado ao meio por uma navalha, em montagem paralela ao movimento de uma nuvem estreita passando diante da lua cheia –, Buñuel mostrava que não estava entrando no métier para divertir, ganhar dinheiro ou encher linguiça. Seu desejo era fazer do cinema um instrumento de revelação, conhecimento, subversão, poesia, vertigem. Aqui a cena, para quem não conhece:

Realizado em Paris e concebido em parceria com seu então amigo Salvador Dalí, Um cão andaluz se baseava nos princípios surrealistas da “escrita automática”, da livre associação e da figuração de sonhos. É talvez o único filme autenticamente surrealista da história do cinema, aquele em que tais princípios foram praticado de maneira mais livre e radical.

Algo desse espírito permanece como força motriz de toda a filmografia buñuelesca, seja num drama social de registro mais “realista”, como Os Esquecidos (México, 1950), seja numa fantasia sarcástica como O anjo exterminador (México, 1962), numa parábola invertida do cristianismo como Viridiana (Espanha, 1961) ou num desvelamento onírico da moral burguesa como Bela da Tarde (França, 1967) – todos eles incluídos na programação da mostra.

Cinema libertário

Filmadas com uma espécie de distanciamento sóbrio, uma enganosa nonchalance, e sempre permeadas pelo humor e pela ironia, as fábulas de Buñuel não têm uma “moral da história”, mas são profundamente morais. Como observou Octavio Paz, ele jamais julga o indivíduo. Sua crítica, frequentemente feroz, volta-se contra os sistemas e as instituições que aprisionam o homem e o levam a agir de forma inumana. É um cinema isento de sentimentalismo, mas pleno de amor – amor à vida, à fantasia, ao sonho, aos seres viventes.

Um cinema libertário ao extremo, que envergonharia quase a totalidade do que vemos hoje nas telas do mundo. Como disse o próprio Buñuel: “Bastaria à branca pupila da tela de cinema poder refletir a luz que lhe é própria para fazer explodir o universo. Mas, por ora, podemos dormir em paz, porque a luz cinematográfica encontra-se convenientemente dosada e aprisionada”.

Jerry Lewis

Outra retrospectiva importante, “Jerry Lewis – O Rei da Comédia”, começa quarta-feira (4 de março) no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo. Serão exibidos 23 filmes estrelados pelo ator norte-americano, em sua maioria dirigidos por ele próprio ou por Frank Tashlin. O público poderá conhecer ou rever clássicos como O terror das mulheresMocinho encrenqueiro O professor aloprado. Clique aqui para ver a programação.

Se existe um gênero em que a apreciação é subjetiva, é sem dúvida a comédia. Embora tenha me divertido muito na infância com esses e outros filmes de Lewis, confesso que nunca partilhei do entusiasmo imoderado de certa crítica (sobretudo francesa) por ele. Talvez por preferir um humor com menos caretas e trejeitos, o humor de cômicos impassíveis como Buster Keaton e Jacques Tati. Mas só com muita cegueira ou má vontade alguém negaria o exuberante talento e a fértil inteligência de Jerry Lewis.

Opções em cartaz

Ainda na ressaca do Oscar, entraram em cartaz alguns filmes que merecem atenção. Em especial o documentário poético Nostalgia da luz, do chileno Patricio Guzmán, uma obra-prima que consegue entrelaçar, na paisagem lunar do deserto do Atacama, uma investigação sobre os desaparecidos da ditadura Pinochet e uma especulação sobre a origem e o destino do universo. Não me pergunte como. Vá e veja:

Sr. Kaplan, do uruguaio Alvaro Brechner, por sua vez, conta a história de um velho judeu aposentado de Montevidéu que passa a desconfiar que um alemão dono de bar de praia seja um criminoso de guerra nazista. Segue-se uma divertida e simpática comédia de erros, com o humor melancólico que costuma caracterizar nossos vizinhos do sul.

Já o brasileiro História da eternidade, longa de estreia do pernambucano Camilo Cavalcante, revisita, com um novo olhar, paisagens e temas do sertão, entrelaçando num vilarejo perdido no tempo as histórias de vários personagens solitários, eventualmente em descompasso com o ambiente. É um belo exercício de estilo, com momentos de brilho e revelação.

Em suma: existe muito cinema fora das fronteiras do Oscar.

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