Os irmãos Ethan e Joel Coen sempre fizeram filmes autoconscientes, de “segundo grau”, ou seja, inspirados mais no acervo cinematográfico mundial (sobretudo americano) do que propriamente no “real”, seja lá o que isto signifique.
Nesse sentido, Ave, César é talvez sua obra mais transparente e programática, porque lhes permite retratar ironicamente as entranhas da indústria cinematográfica e ao mesmo tempo brincar com vários gêneros consagrados por ela (épico, musical, melodrama, faroeste, policial).
O contexto é o do studio system na segunda metade dos anos 1940, isto é, nos primórdios da Guerra Fria. O protagonista, Eddie Mannix (Josh Brolin), executivo do estúdio Capitol, está às voltas com vários problemas ao mesmo tempo: o sumiço do astro principal do épico bíblico Ave, César (George Clooney), a gravidez indesejada de uma atriz solteira (Scarlett Johansson), a escalação de um caubói canastrão (Alden Ehrenreich) para um papel sério num melodrama etc. Mannix, aliás, é inspirado no personagem homônimo, que foi diretor-geral da MGM em seu período áureo.
Religião e comunismo
Um ponto alto é a reunião de Mannix com líderes religiosos (bispo católico, rabino, pastor protestante, patriarca ortodoxo) para discutir a natureza de Jesus Cristo no épico em filmagem. Seria divertido passar a sequência como trailer antes das sessões do sucesso de bilheteria nacional Os dez mandamentos.
O roteiro dos Coen entrelaça habilmente os vários episódios, incluindo sequências isoladas dos diversos filmes que estão sendo rodados, tendo como eixo o desaparecimento do grande astro, sequestrado por um grupo de escritores e intelectuais comunistas.
Se o recente Trumbo retrata como drama sombrio o período macarthista, mostrando sobretudo seu efeito sobre as vítimas perseguidas, aqui o tom é de farsa, com os “vermelhos” vistos como conspiradores falastrões. A sequência em que um ator comunista é levado de bote pelos camaradas até o local onde será recolhido por um submarino soviético é um primor de reconstituição satírica da estética do realismo socialista, com o herói comunista filmado em contre-plongée sobre o fundo de céu e mar cor de chumbo.
Referências irônicas
As referências irônicas a personagens da história hollywoodiana são incontáveis: de Carmen Miranda, matriz evidente de Carlotta Valdez (Veronica Osorio), às colunistas de fofocas Louella Parsons e Hedda Hopper, retratadas no filme como gêmeas rivais (Tilda Swinton). Mas é na reconstituição de época e na paródia dos gêneros que os Coen nadam de braçada. Num cromatismo fake que mimetiza o tecnicolor, eles passeiam prazerosamente pelos clichês do musical, do western, do melodrama “elegante” e do épico bíblico com um misto de afeto e distanciamento, como se fizessem uma colagem em cartolina das imagens originais.
Se o protagonista hesita em certo momento entre seguir na “fábrica de sonhos” ou aceitar uma proposta para trabalhar numa “fábrica de verdade” – de aviões e armamentos –, o filme aposta plenamente na primeira, a despeito de sua visão crítica. É como se os diretores-roteiristas-produtores incorporassem à sua maneira os versos de Paulo Leminski: “Podem ficar com a realidade/ esse baixo astral/ em que tudo entra pelo cano./ Eu quero viver de verdade/ eu fico com o cinema americano”.
O futebol e as tetas
Nas frestas inteligentes do circuito exibidor é possível ver dois filmes radicalmente pessoais, de baixo orçamento e alto valor expressivo: o documentário O futebol, em cartaz no Instituto Moreira Salles do Rio, e a ficção O signo das tetas, que estreou ontem (14 de abril) em cinco capitais e entra na próxima semana em outras três.
Não poderia haver dois filmes mais diferentes. Em O futebol, o próprio diretor, Sergio Oksman, registra fragmentariamente sua convivência com o pai, Simão Oksman, em São Paulo, durante o mês da Copa do Mundo de 2014. Ele morava na Espanha e não via o pai havia mais de vinte anos. Combinam então de acompanhar o torneio juntos, mas acabam não conseguindo ver nenhum dos jogos dentro do estádio.
Esse projeto pessoal do diretor, transformado em dispositivo fílmico, revela-se dramaticamente poderoso. Tudo é visto indiretamente, por pequenas pistas enviesadas: as partidas, o trabalho de Simão em sua oficina de aparelhos eletrônicos, o passado familiar revelado nas conversas lacônicas entre pai e filho, as mudanças operadas na cidade e em seus moradores nas últimas décadas.
Sergio Oksman aposta tudo nessa construção lacunar, em que as coisas importantes parecem estar sempre fora do quadro, em que as palavras decisivas são as não ditas. O resultado é pungente, especialmente quando o desastre nacional no campo (o fatídico 7 a 1 para a Alemanha) coincide com um momento de luto no plano pessoal.
Se o Mundial de 2014 foi um catalisador de tensões sociais, políticas e culturais do país, isso aparece em O futebol apenas de maneira amortecida e filtrada por um drama pessoal. Em vez do épico, a elegia. E mais não se pode dizer, para não estragar o impacto desse belo filme.
Viagem ao princípio
Em O signo das tetas o cineasta maranhense Frederico Machado, autor do intrigante O exercício do caos (2013), dá prosseguimento a sua busca de uma expressão autoral com um filme ainda mais ousado e desafiador. Aqui, o protagonista não nomeado (Lauande Aires, autor também dos poucos diálogos) é um homem assombrado por uma imagem primordial: a dos seios da mãe. Sua trajetória errante por sertões, estradas, cidades, rios, festas populares, bordéis e rituais é uma busca impossível das origens, de reconciliação com essa imagem obsedante.
A partir de versos de seu próprio pai, Nauro Machado, que aparece no filme como pai do protagonista e profeta do sertão, o diretor constrói uma narrativa enigmática, alegórica, marcada por uma iconografia religiosa sincrética, em que se combinam a extrema materialidade dos corpos e da natureza (a carne, o sangue, o leite) e uma fugidia espiritualidade. Do curto-circuito entre o corporal e o sagrado o filme extrai uma estranha poesia. Vale conferir, com olhos livres e mente aberta.