O futuro como ele era

Fotografia

17.03.16

A era Google tem, como se sabe, bolsões de memória curta. Não consegue por vezes enxergar muito além do horizonte da digitalização de notícias nem sempre confiáveis. Quem buscar na ‘A enciclopédia livre’ da internet (Wikipédia) informações sobre, por exemplo, a origem do nome Praia do Futuro, a preferida dos banhistas em Fortaleza, vai descobrir uma meia verdade: diz lá que o lugar foi assim batizado por causa do anúncio de uma imobiliária que loteou o bairro em 1966. O fato criado – e reproduzido mil vezes em outras tantas páginas virtuais – não leva em conta uma notícia de primeira página publicada no Correio do Ceará (edição nº 11.181), de 4 de março de 1949:

A manchete registrada em fotocópias esmaecidas do arquivo da família – a Biblioteca Nacional não dispõe de página digitalizada do Correio do Ceará do final dos anos 1940 – foi uma das primeiras marcas registradas do incrível currículo de reportagens do fotojornalista Luciano Carneiro, cujo trabalho de correspondente internacional da revista O Cruzeiro está em exposição no centro cultural do IMS Poços de Caldas, após uma temporada no IMS São Paulo.

Naquela época, aos 23 anos, já uma estrela da redação do Correio do Ceará, Luciano tinha brevê da escola de pilotagem do Aero Clube de Fortaleza, o que lhe permitiu fazer as fotos aéreas da reportagem da futura Praia do Futuro, até então um imenso areal à beira-mar, sem acesso de transportes por terra ao centro da capital. No final dos anos 1940, as praias de Iracema e Mucuripe eram as mais freqüentadas da região.

Luciano Carneiro, década de 1940. Fortaleza, Ceará. Fotógrafo desconhecido. Acervo família Luciano Carneiro

A reportagem com texto e fotos assinadas por Luciano Carneiro é uma crônica de um lugar prestes a virar outro. No Princípio, era assim, segundo a narrativa do jovem fotojornalista em 1949:

“Pouca gente há de conhecer a mais bela praia de Fortaleza. Não obstante, ela está em vias de se povoar. Fica um pouco longe. (Nós cearenses não perdemos a mania de exagerar as distâncias). Se hoje gastamos 10 minutos para ir ao Meireles, precisamos de 10 minutos de teco-teco para alcançar essa outra praia. Mas amanhã as cousas estarão simplificadas porque amplas rodovias cortarão em todos os sentidos o que agora é mato e é deserto.”

 

Detalhe importante daquele tempo:

“Por enquanto, só os pilotos civis a conhecem bem e a amam, já que a zona de treinamento das ‘garças’ do Aéro Clube fica exatamente por lá. E, exceção feita de alguns entusiastas que vez por outra andam excursionando a pé, ninguém mais a viu no conjunto e conheceu a beleza de seu panorama.”

 

Luciano lamenta no texto o que, sem perceber, soluciona no título:

“A nossa mais bela praia já tem um nome. Um nome feio por sinal. Que o povo lhe deu. É a ‘praia por trás do farol’.”

Praia do Futuro, Fortaleza. Fonte: vitoribeiro90.wordpress.com

Luciano Carneiro não viveu o suficiente para conferir – morreu tragicamente em um desastre aéreo no Rio no final de 1959 – o que aconteceu com o lugar que será para sempre conhecido como a Praia do Futuro daquela manchete de 1949, mas o futuro que a praia lhe inspirava foi subvertido na ideia de paraíso: continua sendo considerada a única de Fortaleza com boa balneabilidade garantida o ano inteiro, é ainda um bairro nobre de condomínios residenciais da zona leste da capital, mas boa parte dos 6 km de natureza intocada na faixa litorânea que só os aviadores avistavam disputa, não é de hoje, espaço com um corredor de megabarracas de comidas típicas – o caranguejo em especial –, algumas equipadas com piscinas, toboáguas, playground e espaço para shows musicais e de humor. Já viu, né? O futuro da praia que Luciano Carneiro batizou meio sem querer é coisa que não se vê mais em sobrevoos de teco-teco.

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