O índio do Corcovado

Miscelânea

09.05.13

Em 1931, meu pai, Luís Martins, era assistente de redação da revista Para Todos, dirigida por Álvaro Moreyra. Um belo dia, apareceu na redação o pintor português Correia Dias (primeiro marido de Cecília Meireles e pai da atriz Maria Fernanda) dizendo ter feito uma descoberta sensacional no Corcovado. Havia o perfil de um índio, dez vezes maior do que o Cristo, esculpido numa das escarpas da montanha. Correia Dias achava que era obra de uma misteriosa civilização pré-colombiana. De fato, se você olhar da Lagoa, altura de Ipanema, para o topo da montanha e fizer um certo esforço (talvez um grande esforço) é possível que veja o perfil de um índio na encosta, do lado direito. Tem um cocar de penas na cabeça e os braços cruzados sobre a barriga proeminente. Lembra vagamente um chefe indígena Sioux, aqueles do desenho do Pica-pau. Mas tudo bem. Se até os fenícios subiram a Pedra da Gávea, por que os Sioux não poderiam ter vindo dar uma voltinha no Corcovado?

Correia Dias estava disposto a se embrenhar na mata e subir a montanha para fotografar o índio. Seria acompanhado por um rapazinho imberbe de 18 anos chamado Carlos Lacerda (sim, o futuro governador da Guanabara), que ficaria encarregado do texto. Resultaria da expedição uma reportagem que o pintor ofereceria de graça ao Para Todos. Álvaro Moreyra achou graça na história. Para alavancar as vendas da revista, sempre mal das pernas, teve o que hoje se chamaria uma brilhante ideia de marketing. Pediu ao seu assistente de redação que encomendasse ao Joubert de Carvalho, compositor de grande prestígio na época, uma música sobre o tal índio e produzisse um disco.

O prazo era curtíssimo. Joubert topou, sob a condição de que meu pai escrevesse a letra. Feita às pressas, O índio do Corcovado saiu como deu. Gastão Formenti, cantor predileto da dupla e de muita gente, foi convidado a gravá-la. Tudo resolvido, faltava apenas uma coisa: uma música para pôr no outro lado do 78 rpm. Joubert não tinha nenhuma, mas disse que tentaria alguma coisa. Foi para casa e compôs uma canção, praticamente da noite para o dia. Lançado o disco, história e música do índio foram recebidas sem muito entusiasmo. Mas Maringá, a do lado B, estourou nas rádios. Fez tanto sucesso que seria mais tarde homenageada até com nome de cidade no Paraná (e não o contrário, como muitos imaginam).

Joubert de Carvalho e Luís Martins fizeram depois outras parcerias. Mas O índio do corcovado é a única música escrita por meu pai que já ouvi. Quando eu era criança, sempre que passávamos pela Lagoa, ele contava essa história, ria, apontava para a montanha e desenhava o índio no ar com o dedo. Eu não tinha a menor dificuldade em visualizá-lo. Faz alguns anos, porém, que sempre que estou no Rio e passo na Lagoa, fixo os olhos na escarpa do Corcovado até quase envesgar, mas não há meio de conseguir ver a silhueta do imponente chefe Sioux. Fico pensando se foi a montanha que mudou ou se fui eu que perdi o índio, não sei como.

* Ana Luisa Martins é escritora.

Ouça as músicas:

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