Os jihadistas não cansam de me surpreender. Leio, no Libération, que cartolas da FIFA estão convencidos de que foi investigando o dinheiro do Catar, sob suspeita de financiar grupos jihadistas, que os americanos chegaram às torpezas da organização esportiva recalcitrante. Por vias tortas, o fundamentalismo islâmico teria sua parte de responsabilidade na debacle espetacular da FIFA. Viva os jihadistas! Leio também, na The New Yorker, que não é possível entender o movimento jihadista sem conhecer poesia e, mais especificamente, a poesia árabe clássica. Para quem ainda não sabia, os jihadistas são os bardos da hora.
Frame de vídeo que mostra jihadistas entoando poesia árabe
Osama Bin Laden era um campeão do verso. Deixou poemas de sua lavra, celebrando, entre outros feitos, o 11 de setembro. Sua correspondência revela que, além de incitar ações terroristas contra o Ocidente, o líder supremo da Al Qaeda também se interessava por métrica e pela “ciência da prosódia clássica”.
“É impossível entender o jihadismo – seus objetivos, a atração que ele exerce sobre novos recrutas e sua durabilidade – sem examinar sua cultura. Essa cultura encontra sua expressão numa variedade de formas, incluindo hinos e vídeos documentários, mas a poesia é o seu coração”, escrevem Robyn Creswell e Bernard Haykel na The New Yorker.
Por que os jihadistas escrevem poesia? O artigo explica o lugar que a poesia ocupa no mundo árabe desde antes do Corão, quando trovadores de tribos nômades cantavam amores perdidos e lamentavam a morte dos companheiros caídos em combate, até a atual extravagância de um concurso televisivo que, inspirado no programa American Idol, é transmitido para mais de 70 milhões de espectadores ao redor do mundo. Poeta de Milhões, de onde saiu até um dos hinos da Primavera Árabe, se orgulha de premiar o vencedor com mais de um milhão de dólares.
No mundo árabe, a poesia atribui autoridade. O Estado Islâmico, por exemplo, já tem a sua poeta laureada. Ahlam al-Nasr é uma jovem militante síria, defensora incendiária do EI, autora de um ensaio em que justifica a decisão de queimar vivo o piloto jordaniano Moaz al-Kasasbeh e de um livro de poemas (A chama da verdade) que os jihadistas recitam em vídeos na internet, como se entoassem hinos ou canções folclóricas (mas sem música, que é proibida), durante momentos de confraternização, quando não estão degolando ou queimando reféns vivos.
A tradição da poesia clássica que o jihadismo professa é relativamente simples e rígida em suas formas, o que não impede que dentro desses limites haja a possibilidade de um certo virtuosismo técnico e performático. Em geral, os poemas obedecem a uma única rima e a uma das variações da métrica canônica, o que os torna populares e mais fáceis de decorar. É uma poesia inequívoca e de fácil compreensão, mais comunitária do que solitária, ideal para a militância, o proselitismo e a propaganda.
“No centro da política jihadista está a rejeição do Estado-nação”, diz o artigo da The New Yorker. A poesia, como expressão dessa política, mitifica o que havia antes das fronteiras nacionais impostas pelo Ocidente. É a pureza do mito contra a corrupção da história. A guerra santa serve a uma fantasia medieval, a utopia do califado. E o anacronismo das formas clássicas, recheadas de termos rebuscados e barrocos, articula a retomada de uma tradição idealizada. A elegia é uma das formas mais celebradas dessa tradição. O martírio é a construção de uma história comum, cantada em grupo.
Se a simplicidade das formas não é fortuita, tampouco um título inflamado como A chama da verdade. Os poemas cantam a jihad como verdade imperativa e não mais como relíquia do passado ou termo a ser reinterpretado por autoridades religiosas dentro de um contexto histórico. O fundamentalismo exorta a leitura ao pé da letra, em primeiro grau, sem interpretações, como se o sentido fosse um só e estivesse dado a priori, tanto no Corão como nos poemas.
O jihadismo não rejeita apenas a ideia de nação imposta como herança colonial por ingleses e franceses ao Oriente Médio, com consequências ainda hoje desastrosas; ele rejeita tudo o que na modernidade ocidental define a grande poesia, a começar pela polissemia, pela ambiguidade, pela ironia e pelo humor. O sentido militante precisa ser manifesto, unívoco e literal. A militância substitui a dúvida pela palavra de ordem e o cético pelo crente. Um dos versos citados no artigo diz: “Acabou a era de submissão ao descrente”.
Aqui, a ideia de ruptura, do novo, fundamental para a poesia moderna no Ocidente, seria uma heresia se não fosse inconcebível. A “revolução” não passa de um reajuste de contas, de uma leitura literal dos textos, de uma sacralização da palavra escrita como verdade, sem o risco de duplos sentidos e sem a ameaça da inteligência.
Ao se servir da poesia como instrumento doutrinário e de propaganda, o jihadismo acaba nos dando mais uma lição: ele explicita, por oposição, o valor profundamente político da poesia que o senso comum considerada inócua, aquela “que não serve para nada”, a poesia que se lê sozinho e que celebra a dúvida, a ambiguidade, a ruptura e a possibilidade de interpretação (a inteligência) do leitor. Primeiro, porque ela trata de um mundo real (e não de uma fantasia mítica) e depois, porque, ao cantar singularidades e subjetividades, não pretende impor regras, nem limites nem fronteiras a ninguém.