É grande, quase incontornável, a tentação de começar aqui afirmando que, com Carmen Balcells, morre um pouco mais de uma era da edição literária. Pois é, o clichê, besta-fera de que temos a obrigação moral de fugir, às vezes nos prega uma peça. E vira a “palavra exata” justo na hora de falar de alguém que, como a agente literária catalã, sempre passou longe do lugar-comum. Pois, convenhamos, não era exatamente banal decidir ganhar a vida intermediando as relações entre escritores e editores na Espanha franquista dos anos 1950. E, muito menos ainda, assumir, já na década seguinte, um protagonismo pouco comum à profissão, tornando-se o epicentro editorial do boom latino-americano que nos deu a brilhante geração de Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Julio Cortázar e Carlos Fuentes.
Há quem diga, com exagero mas sem despropósito, que Carmen foi mesmo a artífice do boom, que soube aproveitar a buena onda de tantos talentos emergentes e articular, com maestria, escritores então periféricos, de países periféricos, com o centro editorial do mundo hispânico. Mas é claro que ela fez muito mais do que isso: inventou, de modo muito passional, um jeito de defender autores com unhas e dentes, de pensar sempre e tão somente em seus interesses (que, é óbvio, eram também os dela) e de acolhê-los com zelo maternal extremado, forjando com afeto e cumplicidade uma relação que, não é difícil imaginar, não cabia nem coube em “modelos de negócio”. Não à toa era, para García Márquez, a Mamá Grande.
Não poucas vezes, a mãe dos escritores foi madrasta dos editores. Respeitada e admirada por seu trabalho diligente, Carmen era não raramente temida antes de uma negociação e detestada ao fim dela. Na única vez em que a vi, de longe, na minha primeira Feira de Frankfurt, sua figura hierática, altiva, não deixava ver a afetuosidade dos muitos relatos sobre sua intimidade. Parecia uma personagem e talvez até o fosse, conscientemente, num tempo em que o mercado editorial era menos asséptico e, no mínimo, bem mais divertido e interessante.
“Ela mudou minha vida”, me diz Lucia Riff, já há algum tempo a mais importante agente brasileira. E ela não exagera. Há mais de trinta anos, quando Carmen mantinha uma visionária operação no Brasil, representando àquela altura dezenas de autores, Lucia, recém-formada em psicologia, dois filhos, resolveu se candidatar a um emprego mesmo não tendo muita ideia do que faria. A sucursal carioca da agência era dirigida por Ana Maria Santeiro, mas Lucia foi entrevistada pela própria Carmen depois da intermediação de um amigo. “Você gosta de ler? Isso é que é importante. O resto você aprende rápido. Tenho certeza de que você nunca vai querer sair disso, quem entra no mercado não sai mais”, disse Carmen.
Depois de um ano na agência, Lucia partiu para outros empregos, todos eles, cumprindo o destino traçado por Carmen, no mercado editorial. Em 1989, sete anos depois daquela entrevista, recebe uma ligação com a pergunta inesquecível: “Você se lembra de mim?” Era Carmen, que remodelava o negócio e propunha sociedade. Nascia a BMSR, Balcells, Mello e Souza Riff, que em 2004, quando Carmen anunciou retirar-se do dia a dia em Barcelona, virou a Agência Riff de hoje, produto de uma separação amigável e negociada. “Ela reinventou a profissão com a paixão pelo autor, o acompanhamento do manuscrito, o cuidado nas negociações. Também era dura, e me ensinou que todo contrato tinha que poder acabar”, conta Lucia.
Dos brasileiros, a Agência Balcells ainda mantém em seu catálogo Rubem Fonseca (só para o exterior), Nélida Piñon, Clarice Lispector e Autran Dourado. E, no que depender dos acordos anunciados ano passado, eles deverão ganhar ainda mais força no mercado internacional com a associação da agência à Wylie Agency, comandada por Andrew Wylie. Trata-se do encontro de dois mundos: o da Mamá, com seus laços de sangue, e os do Chacal, apelido pouco carinhoso dado ao americano que há pelo menos vinte anos dá as cartas no mercado editorial literário fazendo muito, muito dinheiro nos mais leoninos contratos de que se tem notícia. As personalidades, digamos, fortes dos dois adiaram por um bom tempo a conclusão das negociações. Quando começarem a operar juntos, estará formada a “superagência” (o termo é deles) dos tempos globalizados, unindo Philip Roth, Borges, Claudio Magris, Jorge Amado (é da Wylie), John Berger, Roberto Bolaño, V.S. Naipaul, James Wood, John Updike entre muitos outros.
Numa reação forte ao anúncio da sociedade, Alberto Manguel deplorou em artigo no El País a criação do que chamou de um “supermercado de autores”. Argumenta ele que em momentos decisivos, quando, por exemplo, os escritores precisam das leituras cuidadosas do agente e do editor, o gigantismo vai destruir os importantes laços desta relação. “Não é possível ser fiel a um harém”, sentenciou Manguel.
Aos 85 anos, Carmen Balcells sai de cena e, ironicamente, deixa-a inteira para o Chacal brilhar. Seu legado não é apenas uma empresa muitíssimo bem-sucedida, mas pedaços da história encerrados nas duas mil caixas de seus arquivos, vendidos por três milhões de dólares, em 2010, ao governo espanhol. Foi, sem dúvida, mais um bom negócio. Mas que, como todos os outros que fez, ajuda a entender melhor um mundo que, definitivamente, não foi nem é puro resultado de negociações mirabolantes.