Ozon e as artimanhas da ficção

No cinema

04.04.13

O francês François Ozon é um cineasta peculiar. Seu território, de um modo geral, é a família francesa de classe média, aturdida diante das novas tensões sociais, étnicas, morais, espirituais. Na sua abordagem predomina a sátira corrosiva, mas esta se dá sob os mais variados gêneros: do thriller (Swimming pool) ao drama (O tempo que resta), passando pela comédia extravagante (8 mulheres, Potiche).

Nessa filmografia heterogênea, mas nunca banal, Dentro da casa [ assista ao trailer ] se destaca como um dos trabalhos mais maduros e bem construídos. A partir de uma situação simples – um professor de colégio (Fabrice Luchini) ajuda um aluno talentoso (Ernst Umhauer) a escrever uma redação em capítulos sobre a família de um colega -, Ozon desdobra uma complexa tapeçaria, em que se entrelaçam vários planos narrativos: a história da relação cotidiana entre aluno e professor, a própria história que o aluno escreve e, por fim, uma espécie de terceira dimensão formada pela interpenetração das outras duas – realidade e ficção confundidas num drama único.

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Não é a primeira vez que se vê, no cinema, uma situação em que um personagem-narrador (ou crítico) invade o plano de sua narrativa, comentando ou modificando a ação de suas criaturas. Woody Allen cansou de fazer isso, e Alain Resnais radicalizou o processo em Providence (1977), que se passa em grande parte no interior da mente de um escritor.

A graça particular de Ozon, baseado aqui numa peça teatral do espanhol Juan Mayorga, consiste em conferir mais ou menos a mesma densidade às várias camadas do relato, de tal maneira que ora assume o primeiro plano a relação do aluno/narrador com a mãe (Emmanuelle Seigner) do colega retratado, ora com o pai (Denis Méchonet), ora com o próprio colega (Bastien Ughetto). Em outros momentos, o foco recai sobre o professor e sua mulher (Kristin Scott Thomas), que dirige uma galeria de arte à beira da falência.

Temas atuais e eternos

Por meio desse jogo de alternâncias, o cineasta coloca em cena ao mesmo tempo uma miríade de questões, algumas atuais (crise social, declínio do ensino formal, submissão das artes ao mercado, invasão econômica chinesa etc.), outras mais atemporais, como a relação mestre-discípulo, a criação artística como sublimação de uma carência real e, sobretudo, a tensão erótica que move toda narrativa. (Não por acaso, o professor recorre à imagem de Sherazade e o sultão).

À excentricidade kitsch e às cores berrantes de alguns de seus filmes anteriores, Ozon contrapõe aqui um estilo mais sóbrio, em que o trânsito entre o “real” e a ficção se dá por uma sutil mudança fotográfica: uma iluminação fria e dura no primeiro caso, uma luz mais suave no segundo.

A entrada do aluno/narrador na casa do colega, e o efeito desestabilizador que isso provoca, lembram o Teorema de Pasolini (aliás referido pelo próprio professor), só que numa chave muito menos radical. Pensando bem, o cinema de Ozon pode ser visto como uma reciclagem pop e irônica de questões que animavam (ou melhor, atormentavam) a obra de cineastas como Pasolini e Fassbinder, seus ídolos confessos. Mais ou menos como Almodóvar recicla e atualiza o universo de Buñuel.

Quem quiser conferir o trailer do Teorema, aqui está ele:

 

O que comove

Na abertura do Festival Cinesesc de Melhores do Ano, ontem (3 de abril), foi exibido um filme extraordinário, O que se move, do estreante em longa Caetano Gotardo, do coletivo paulista Filmes do Caixote, de que fazem parte Juliana Rojas e Marco Dutra, os diretores de Trabalhar cansa. Ainda sem data de estreia, o filme passou meio despercebido pelo festival de Gramado do ano passado, onde conquistou apenas o merecido prêmio de atriz, para Fernanda Vianna.

Ainda se falará muito de O que se move, uma tripla tragédia sobre a perda. Pretendo revê-lo, para absorver e elaborar melhor a comoção inicial, antes de escrever a respeito, mas registro desde já a necessidade de dar a ele uma atenção especial.

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