Pingue-pongue predial

Correspondência

01.03.11

Galera,

Pior é que eu fiz kung fu, até avancei de faixa, no mesmo ano em que encenei o Manifesto Comunista diante dos meus coleguinhas burgueses. Na verdade era uma luta chamada ving tsun, um kung fu mais puro e ancestral, cheio de sabedoria, praticado somente pelos bravos. A escola ia mal das pernas, e lançaram esses cursos para fazer caixa. Eu e o Proletariado nos inscrevemos, éramos viciados em filmes de luta, e sabíamos que o ving tsun tinha sido o primeiro estilo do Bruce Lee, de onde ele tirara os preceitos do Jeet Kune Do. Mais que isso: teríamos um mestre (ou “Sifu”, no jargão dos iniciados) que descendia de uma linha treinada diretamente por Yip Man, sendo Yip Man o grande patriarca do ving tsun moderno.

Juro que não estou tentando encaixar aqui mais uma Lembrança Adolescente funesta, não se preocupe. Acho que avançaram a gente por pena, uma coisa meio simbólica, e tudo bem, se você quer saber. Na verdade, era uma hierarquia mais poética, nós pulamos da faixa “Pequena Idéia Inicial” para a “Atravessar a Ponte”. Nunca chegamos ao terceiro estágio, “Dedos que voam”, sabe-se deus o que vinha depois. Até pouco tempo atrás eu ainda tinha o livro vermelho do Ving Tsun, mas ele acabou lamentavelmente perdido em alguma mudança, então fico te devendo uns ensinamentos.

Eu mesmo não preciso mais d’O Livro. Lembro direitinho da primeira sequência de movimentos, embora uma breve passada nos golpes em frente ao espelho, agora mesmo, tenha aniquilado meu ser vital e qualquer chance de voltar ao kung fu. Também guardei vários dos ensinamentos, claro. Quase todos eram parábolas de moral duvidosa, aplicáveis aos mais diversos ramos da Atividade Humana. Um sujeito numa ponte etc. Mas trata-se de uma arte centenária, e claro que carrega alguma substância.

O grande barato do ving tsun está na economia de movimentos. Tudo precisa ser realizado no menor espaço possível, ocupando as brechas entre você e o oponente de maneira rápida e eficaz. A expressão máxima disso é o Soco de Uma Polegada do Bruce Lee, um “golpe de marketing” para encher academia, mas que não deixa de ser impressionante. Todavia, antes de dominar o Soco, você passa anos praticando os movimentos lentamente, com precisão. A idéia é que, quando você finalmente puder aplicar os golpes com força, não precisará mais de força para aplicar os golpes, e coisa e tal.

A cada grau que você avança, a sequência de movimentos aumenta, mas preserva todos os estágios anteriores, de modo que são incontáveis sessões aperfeiçoando as mesmas manobras. Consigo ver nesse rigor algo do que você estava falando, o que o Mishima descreveu como “território afim àquele reino supremo onde movimento torna-se repouso e repouso, movimento”. Capaz de eu gostar desse livro, aliás. Nunca li nada dele.

Mas há nessas filosofias de artes marciais ? ou na maneira que chegam aqui, vai saber ? uma certa Síndrome de Surfe no Havaí, sabe? Aquele filme em que o moleque, um “haole” do Arizona, precisa surfar com todos os pranchões do mestre até chegar à prancha de bico fino, superar seus limites e tornar-se um “soul surfer”? (Se você não conhece, assista imediatamente.) Sabedoria de Tio Grilo Falante, acho muito hermético. Mas fiz um bom ano de ving tsun, até começarem a exigir um mínimo de seriedade. Hoje, ver alguns filmes por ano e ler uma coisa ou outra bastam, de sobra.

Eu gosto mesmo é de pingue-pongue. Disse em forma de chiste jocoso da última vez, mas é a mais pura verdade. Acho que é por isso que não consigo muito com tênis. Enquanto um parece restrito, empolado, o outro é a própria expressão do esporte, acessível a qualquer um, infinitamente adaptável, argamassa afetiva que une gerações e povos. Consigo traçar uma história de quase toda a minha vida a partir do pingue-pongue: quem eram meus adversários em cada época, como eu jogava, os tipos de saque etc.

Quando era moleque, eu e o Boca, vizinho do quinto andar, fizemos uma rifa no prédio, para comprar uma mesa. O Boca era entendido, jogava com uma raquete Butterfly Black e bolas Nitaku, e posso estar imaginando, mas acho que ele lia revistas especializadas em pingue-pongue. A gente rodou o prédio inteiro com a rifa, o prêmio era uma calculadora científica HP, e no fim meu irmão ganhou a calculadora e nós compramos a mesa. Lembro bem de minha surpresa quando meu irmão levou o prêmio.

Passei um tempão jogando naquela mesa, que ficava num corredor estreito da garagem. Logo nos adaptamos para praticar o chamado pingue-pongue predial, de braçadas curtas e ligeiras, aproveitando as restrições de espaço em vez de ser limitado por elas. Já quando se desenvolve em áreas amplas, o pingue-pongue assume movimentos mais largos, um jogo de cortadas violentas, em que os oponentes ficam distantes da mesa. Em bares esfumaçados, os jogadores são forçados a arquear o corpo, projetando-se para dentro da mesa, num pingue-pongue preemptivo, que mais busca interceptar jogadas do que criá-las. Um esporte maleável, elástico, traiçoeiro na aparente simplicidade.

Confesso que ainda estou meio tomado por uma coletânea de ensaios sobre pingue-pongue, “Everything you know is pong: How mighty table tennis shapes our world”. O livro é uma comovente declaração de amor ao esporte e também uma defesa de seus valores, apoiada em vasta bibliografia e iconografia. Os autores remontam a origem do pingue-pongue à Índia (“terra dos jogos mais puros da modernidade: o xadrez e a briga de galo”), e de lá partem para traçar uma história do Homem a partir do Jogo, atravessando séculos de intriga internacional e pingue-pongue desenfreado.

Na introdução, os organizadores argumentam que a tendência dos esportes é homogeneizar: um torcedor da NBA em Xangai usa a mesma camisa que um torcedor em Mombasa. O pingue-pongue, por sua vez, prospera nas frestas da sociedade, onde quer que haja gente de fibra, sempre alheio à comercialização. Isso sem entrar em considerações religiosas e parábolas de moral duvidosa.

Enfim.

Abraços,

André

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