Inventar tudo – quatro perguntas a Richard Flanagan

Quatro perguntas

07.07.15

A literatura australiana é pouca conhecida dos brasileiros – é possível contar nos dedos o número de autores contemporâneos disponíveis nas nossas livrarias. Richard Flanagan, um dos destaques da FLIP 2015, já teve seu O livro dos peixes de Gould publicado há dez anos, recebendo pouca repercussão. Mas agora, com a reedição pela Editora Globo do romance (em nova tradução – irreparável, por sinal – que recupera arcaísmos como “&” e jogos de diagramação), a publicação de O caminho estreito para os confins do Norte, vencedor do Man Booker, e a vinda do carismático autor para a FLIP, talvez a literatura de Flanagan deixe de ser uma criatura tão estranha ao leitor brasileiro. O australiano – que ficou chocado com a popularidade do programa televisivo Masterchef Australia no Brasil e foi confundido com Bruce Willis pelas ruas de pedra da cidade – recebeu a equipe do Blog do IMS na pousada em Paraty e respondeu às quatro perguntas abaixo sobre seus dois livros traduzidos para o português, tão diferentes entre si.

Richard Flanagan (Crédito: Colin Macdougall)

1) O livro dos peixes de Gould e O caminho estreito para os confins do Norte são dois livros muito diferentes – um é picaresco, à moda de Thomas Pynchon, o outro é bastante realista. Qual tipo de romance você considera mais fácil (ou difícil) de escrever? Em qual gênero você se sente mais confortável?

Em todo romance que escrevo preciso destruir a forma que usei anteriormente. Se você usa os mesmos tropos e ideias, o que antes era uma maneira criativa de dizer a verdade se torna estagnada, então você acaba sem dizer a verdade, mas enganando o leitor ao contar uma mentira. Então sempre tento descobrir uma forma que não usei ainda, por isso preciso me esforçar para encontrar qual é a verdade que busco expressar. Não é como se eu me sentisse mais ou menos confortável neste ou naquele gênero, e sim que estou constantemente tentando ser um escritor melhor ao me aventurar num lugar onde não estive antes.

2) Pouquíssimos escritores australianos contemporâneos são traduzidos para o português brasileiro – além de você, só consigo pensar em Steve Toltz, de A fração do todo. Há uma tendência contemporânea na literatura australiana? Ou os seus livros dialogam com uma tradição australiana? Porque aqui no Brasil não conhecemos tal tradição.

Quando meu primeiro livro foi publicado, o maior jornal da Austrália se recusou a resenhá-lo, pois disseram que o meu livro não se encaixava a nenhuma escola literária do país. Foi a coisa mais legal que já disseram sobre meus livros. Então não sei o que é “literatura australiana”. Só escrevo livros que me interessam. Acho que, se você é escritor, você pertence ao país onde cresceu, mas também ao universo dos livros, então eu descobri a minha Tasmânia e minha Austrália na escrita de Borges, Guimarães Rosa, Kafka, tanto quanto na obra de escritores australianos. Acho que isso serve para todos os escritores ao redor do mundo. A ideia de literatura nacional funcionou por cerca de 150 anos, mas é uma maneira de pensar um tanto vã. Um escritor não é, antes de qualquer outra coisa, um romancista brasileiro ou um poeta australiano. É apenas um escritor. E qualquer adjetivo é uma gaiola em busca de um pássaro.

3) Os seus dois romances traduzidos ao português são bastante centrados na história. Um é mais metaficcional, o outro mais realista, mas, ainda assim, ambos têm os pés bem fincados na história. Qual o seu método de pesquisa?

Não tenho um método. Invento tudo (risos). Acho que é uma enganação contemporânea isso de que, se você incluir o passado na sua escrita, você está operando num segmento específico da literatura. Mas não chamamos Homero de poeta histórico, e não chamamos Shakespeare de dramaturgo histórico. É uma ideia muito recente que vem de meados do século XX, de quando começaram a compartimentar a literatura em nichos de mercado: você tinha escritores literários, escritores históricos. Mas não é como vemos o mundo. Pensamos que o Alzheimer é a doença mais cruel de todas, que destrói o caráter, porém, no fundo, só destrói a memória, e no fim das contas, tudo o que somos são nossas constantes invenções de nossa memória de nós mesmos. Isso é o que acho que a literatura faz, assim como a mente humana. Escrevi romances que parecem contemporâneos, outros que parecem históricos. Para mim, todos os romances são contemporâneos, só tem cenários diferentes. Um romancista busca comunicar coisas muito abstratas de dentro de sua alma, sentimentos muito abstratos, e daí criam histórias e enredos para poder dar conta disso. Entretanto, um romance não é sobre enredo e personagens, mas sobre as coisas aqui dentro (aponta para o coração).

4) Em O livro de peixes de Gould e Wanting (inédito no Brasil), você cria uma história ao redor de figuras que de fato existiram: William Gould, Charles Dickens. Quais são as dificuldades de escrever uma ficção ao redor de uma biografia verídica?

A mesma dificuldade que há em criar uma ficção ao redor de uma biografia de alguém que não existe: ela precisa ser boa. A literatura só tem uma moralidade: que seja boa. Não é jornalismo, não é história, não é direito. Precisa ser boa em si mesma. Não responde à moral, à ética, responde apenas às suas estranhas leis. E precisa ser algo bom de ler. 

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