Downton Abbey, a série que retrata a vida da aristocracia inglesa no início do século passado, acaba de estrear na TV Cultura, e sua entrada na televisão brasileira tem muito a ensinar sobre uma das questões que atravessa a desigualdade brasileira: a divisão em classes. Downton Abbey conta a história de uma família aristocrática em lenta decadência, confrontada por um lado com a ascensão da classe média, por outro com o início da desnaturalização da posição dos criados, estes por sua vez também organizados em um rigoroso sistema hierárquico (mordomos, governantas, damas de companhia, cozinheiras, assistentes de cozinha, valetes).
A atriz Maggie Smith na série Downton Abbey
Nesse contexto, há inúmeros dramas, mortes, nascimentos, casamentos, e tudo mais que pode acontecer na vida de uma família ao longo dos anos. Esta é a característica, digamos, novelesca da série, na qual chamam a atenção dois aspectos. O primeiro parece explícito e intencional: mostrar o processo de transformação da aristocracia, então ameaçada de perder seus privilégios, seja pela escalada econômica e cultural da classe média, seja por que a classe trabalhadora já não está mais disposta a se manter submissa.
Fatos históricos, como o início da Primeira Guerra Mundial, ou enredos fictícios, como o casamento de uma das filhas da família aristocrata com o motorista irlandês, dão conta de retratar o que parece estar em jogo – a luta de classes. Praticamente como no Brasil do século XXI. Aqui, no entanto, o debate sobre a luta de classes tem sido sistematicamente atravessado por dois outros debates – o combate ao racismo e a desigualdade de gênero – como se fosse necessário ou mesmo possível criar algum tipo de hierarquia entre desigualdades.
No Brasil de 2015, como na Inglaterra de 1910, o que entra em colapso quando se reconhece a centralidade da luta de classes é a própria ideia de que há um lugar destinado a cada um, lugar este determinado por condições econômicas, culturais ou sociais. Se me proponho a aproximar a conservadora Inglaterra do início do século XX do Brasil também conservador do início do século XXI, é por achar que uma de nossas piores tragédias é ainda acreditar na ideia de que existem lugares fixos. Sobre essa crença, se constitui o racismo contra alunos negros nas universidades, mas também se fundamentam os discursos de que só negros podem lutar contra o racismo. Sobre essa crença, mantém-se a hierarquia de gênero, a heterossexualidade compulsória e a homofobia, mas também fundamentam-se discursos de que só mulheres e homossexuais podem lutar contra a discriminação de gênero. Sobre essa crença, naturaliza-se a relação entre pobreza e vida precária.
Em Downton Abbey, a organização social a partir de lugares vem da ideia de que a tradição justifica e naturaliza o lugar que cabe a cada um no mundo social. No Brasil, a convicção de que a vida em sociedade pode ser organizada a partir de lugares pré-fixados permite a naturalização do assassinato do menino Eduardo Jesus Ferreira, 10 anos de idade, morto com uma bala na cabeça na porta de casa. Na prática, naturaliza-se toda morte em favela, como se ali fosse “lugar” de ser assassinado, ainda que criança, ainda que vítima da violência de estado. Nos últimos dez anos, o Estado do Rio de Janeiro concentrou 60% desse tipo de crime no país, e 50 crianças como Eduardo foram mortas pela polícia. Portanto, a julgar pelas estatísticas, lugar e cor da pele tornam-se destino.
Vidas que valem a pena ser preservadas ocupam lugares simbólicos diferentes das que não têm valor social. No noticiário, na maneira como a sociedade sofre o luto por essa perda, na forma como os governantes reagem, nos discursos oficiais e nas diversas representações do ritual de morte, há vidas que parecem valer mais que outras, jogando por terra outra ideia tida como natural, a do valor absoluto da vida. Este é o segundo aspecto que me chama a atenção em Downton Abbey: depois do trauma da Primeira Guerra Mundial, o valor da vida se modifica para todas as classes, e conforme as transformações sociais avançam, homens e mulheres reagirão às mudanças de modo distinto. Para os homens em posição de poder – seja o patriarca da família, seja seu mordomo –, os lugares bem definidos são uma forma de manter as a vida ordenada sob seus comandos. Para homens subalternos e mulheres – aristocratas ou criadas, são todas subalternas, ainda que em graus muitos diferentes de submissão –, a possibilidade do fim de uma organização topológica é a perspectiva de liberdade em relação a roteiros de vida determinados.
Se o debate sobre a questão de classe me parece intencional, no que diz respeito às diferenças sexuais, Downton Abbey é mais voltada para temas morais, sobretudo o casamento, já que a escolha de parceiros amorosos ainda está pautada por interesses sociais e econômicos orientados a manter o patrimônio no mesmo lugar de sempre (as mulheres aristocratas são literalmente moeda de troca). É de forma quase subjacente que se pode perceber, na terceira temporada, uma transformação das posições assumidas pelas mulheres. Da tia Violet, a grande dama inglesa interessada em manter as aparências – magistralmente interpretada pela atriz Maggie Smith –, à criada demitida por se apaixonar pelo patrão, todas as mulheres de Abbey se mostram dispostas a mudar. Em parte porque a série idealiza essas mulheres como um grupo que teria pouco a perder nos seus respectivos lugares, destituídos apenas de valor social. Não há violências explícitas, por exemplo, o que permite a representação das mulheres inglesas como elegantes e inquietas senhoras. No entanto, quando, como no Brasil, os lugares passam a representar um risco de vida, interrogá-los torna-se uma tarefa ética que a morte do menino Eduardo impõe.