Reina Sofia, o último circuito ideológico

Artes

28.08.12

A Torre Eiffel de Madrid está guardada dentro de um museu. Assim como, ao ficarmos sabendo que alguém visitou Paris, a primeira imagem que vem à cabeça é uma foto tirada de longe centralizando a estrutura metálica, o equivalente da cidade espanhola é a Guernica, pintura que revisita em grandes proporções e com traços cubistas os terrores da Guerra Civil Espanhola.

Se seguirmos na analogia com a capital francesa, pode-se dizer que o Centro Cultural Reina Sofia, onde a obra de Pablo Picasso se encontra em exibição, funciona de forma semelhante ao Museu do Louvre: 90% dos visitantes enfrentam as filas, pagam o ingresso, perguntam a um segurança onde está a Mona Lisa, se acotovelam para tirar uma fotografia com os seus smartphones e procuram pela saída, ignorando uma coleção riquíssima que percorre séculos da história da arte. Da mesma maneira, a maior parte das pessoas que passam pelo Reina Sofia sabe exatamente o que quer ver e não perde tempo percorrendo as demais salas de exposição.

É natural, portanto, que a abertura de novas salas destinadas à coleção permanente do Centro Cultural tenha passado despercebida para muitos. Uma pena: a divisão do museu que recebeu o título de De la revuelta a la posmodernidad (1962-1982) abriga um conjunto de trabalhos que foram criados justamente para os visitantes que não a visitam: pessoas que não se interessam por arte a fundo, mas demonstram certa curiosidade em relação à produção cultural em geral.

Mas o que deu errado para que tais obras não chegassem ao seu público? Para entender, é preciso voltar à década de 1960 e relembrar o contexto em que elas foram produzidas. Munidos de um arsenal de ideias herdadas dos dadaístas e conceitualistas, os artistas deste período revolucionaram completamente as noções formais dentro do âmbito artístico. A própria ideia de atividade artística se desmaterializou, passando a ser encarada como um acontecimento social. Foi neste contexto que surgiram as instalações, os happenings e as performances – “obras” de arte efêmeras, que transcenderam o espaço tradicional dos museus e passaram a ser exibidas ou executadas em qualquer ambiente.

Por trás de tudo isso estava também a ideia da morte do autor, reivindicada muitas vezes pelos próprios. Se a prática artística passava a ocorrer em um âmbito pessoal, a partir de uma relação estabelecida entre público e executante em um espaço-tempo restrito, não havia sentido em reivindicar que um fosse mais dono da obra do que o outro. Combatia-se, assim, o fetichismo e o espetáculo dos grandes museus, que colaboravam para transformar algumas peças em objeto de culto. Como exemplos-mor da atualidade, poderíamos citar justamente a Mona Lisa e a Guernica.

Das criações brasileiras dessa época, um dos exemplos mais célebres é a série Inserções em Circuitos Ideológicos, iniciada pelo carioca Cildo Meireles em 1970. Sua proposta, como o próprio nome indica, era infiltrar-se em sistemas de distribuição sustentados pela mesma ideologia que se desejava combater. Assim, no projeto Cédulas, por exemplo, Cildo carimbou uma série de notas de dinheiro com dizeres como “Quem matou Herzog?”. Tratava-se de uma contestação ao governo vigente no país à época, distribuída a uma infinidade de pessoas por meio de um objeto (as cédulas) produzido pelo próprio. Da mesma forma, na série Coca-cola, mensagens contrárias à política norte-americana eram gravadas em tinta branca sobre garrafas vazias do refrigerante, de forma a não serem vistas enquanto os recipientes permanecessem vazios. As garrafas eram então levadas de volta à fábrica e colocadas novamente em circulação, difundindo publicamente um texto desfavorável à marca às suas próprias custas.

É irônico, no entanto, que algumas destas garrafas e cédulas agora façam parte da coleção do Reina Sofia e estejam em exibição nas suas novas salas. As obras, criadas para combater a ideia de que a arte se restringia à noção de objetos expostos em um museu, acabam por ser expostas como objetos em um museu. É uma nova inserção em circuitos ideológicos – quase um processo de reciclagem. A diferença é que, desta vez, o circuito ideológico em questão é o próprio campo da arte.

A dúvida, portanto, é em que momento se deu a inflexão que acabou por levar para dentro dos museus a produção de toda uma geração de artistas avessa a eles. E a explicação, especulo, pode ser muito mais mundana do que se espera. Fato: artistas pagam suas contas como qualquer outra pessoa e, mesmo quando o seu objetivo não é juntar uma fortuna a partir do seu trabalho, precisam lidar com a questão de que fazer arte é frequentemente muito caro. Consequência: mesmo que não produzissem obras materiais que possam ser comercializadas, muitos desses artistas sentiram a necessidade de registrar o seu trabalho, fosse para ganhar alguma visibilidade no circuito ou fosse para encontrar apreciadores dispostos a bancar as suas performances, instalações ou intervenções.

Na quase totalidade dos casos, esses registros se davam por meio de fotografias e vídeos – suportes quase tão materiais e vendáveis quanto a pintura, o desenho ou a escultura. A partir daí, voltava-se à mesma lógica dos tempos anteriores: a melhor forma de atrair atenção era conseguir que os registros fizessem parte de uma exposição, a melhor maneira de chegar até uma exposição era estar em grandes coleções, a melhor maneira de estar em grandes coleções era ter um bom galerista e assim por diante.

Até aí, nada de novo. O curioso deste processo em particular é que, ao invés do enredo estereotípico em que a cultura de massaengloba as vanguardas artísticas, incorporando parte de seu conteúdo e regurgitando-o de forma mais palatável (e despolitizada) a um grande público, verificou-se um movimento no sentido oposto. Concebida desde o início para ser mainstream, a produção deste período não conseguiu transpor os limites do espaço destinado à arte experimental. E a maior parte dos visitantes não entra em museu para ver essas salas, mas para ver a Guernica, a Vênus de Milo, a Mona Lisa… para ver, enfim, o que é mainstream de fato.

Por isso, a presença das Inserções de Cildo em De la revuelta a la posmodernidad assume também um ar nostálgico. Em meio a tantas outras obras que buscavam combater o colonialismo, a pobreza, o machismo, a exploração, o status quo da economia internacional e a sacralização da “alta cultura”, ela sobrevive como o último suspiro de uma produção cujo fracasso se confirma pelo simples fato de estar ali, restrita àquela sala. Ao menos, como tanto queria essa geração de artistas, as ideias sobreviveram.

* Bruno Mattos é tradutor e editor da revista Cadernos de Não Ficção. Já trabalhou na Bienal do Mercosul e na Fundação Iberê Camargo. No primeiro semestre deste ano, estudou na Universidad Autónoma de Madrid.

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