Retomar as cidades – quatro perguntas para Janice Caiafa

Quatro perguntas

01.07.13
Janice Caiafa

Janice Caiafa

A onda de manifestações que se espalhou pelo Brasil em junho de 2013 teve como estopim protestos em São Paulo contra o aumento no valor de 20 centavos no preço das passagens de ônibus. O Blog do IMS convidou Janice Caiafa, antropóloga e professora da Escola de Comunicação da UFRJ, para responder quatro perguntas em torno do que levou a questão dos transportes urbanos a detonar um movimento nacional de reivindicação por direitos. Janice é autora, dentre outros, de Trilhos da cidade: viajar no metrô do Rio de Janeiro (2013, 7Letras) e Jornadas urbanas: exclusão, trabalho e subjetividade nas viagens de ônibus na cidade do Rio de Janeiro (2002, Editora da FGV). Como poeta, publicou Estúdio e Ouro, ambos pela 7Letras.

1) Foi comum ouvir e ler a surpresa provocada por ter surgido nos transportes, e por causa de um aumento de 20 centavos nas passagens de São Paulo, o estopim para tamanha movimentação da sociedade. Para você, não deve ter sido uma surpresa. Por que a locomoção das pessoas é um tema fundamental e capaz de destampar tanta insatisfação?

Vivemos um momento muito vigoroso, em que milhares de pessoas em muitas cidades brasileiras estão saindo às ruas ? insistentemente, todos os dias e há vários dias ? para denunciar a situação em que a população do país foi arremessada devido às atitudes mais descabidas e injustas dos governantes. Trata-se, ademais, de um movimento propositivo, afirmativo, em que se formula igualmente a direção em que é preciso ir. E o faz numa linguagem livre, não codificada pelos canais reivindicatórios tradicionais com que, justamente, os governos conseguem muitas vezes dialogar e, por vezes, compor, de forma que as coisas continuem como estão. É uma linguagem, por isso mesmo, mais criativa, e muitas vezes a ética se alia a uma dimensão estética ? o que, a meu, ver, tem grande eficácia de intervenção.

Um tema recorrente é a situação precária dos serviços públicos ? e foi a questão do transporte, de fato, que impulsionou todo este amplo movimento. Ficou claro que a população sabe que está sendo ludibriada, subtraída de seus direitos fundamentais. e que um dos canais desse desvio perverso é, por exemplo ? como se observa nos cartazes, nas declarações, nas palavras de ordem ? a prática muito generalizada e autorizada da corrupção pelos políticos. E, ainda, uma denúncia de grande contundência, a da transformação das cidades brasileiras em canteiros de negócios em nome da realização desses eventos mundiais esportivos. Pessoas estão sendo desalojadas, bilhões estão sendo gastos na preparação de equipamentos de lazer para a exploração pelo negócio privado (a destruição/transfiguração do estádio do Maracanã é fato emblemático) e o próprio espaço público privatizado, virando um mero entorno igualmente rentável desses estabelecimentos transformados em empresas.

O transporte coletivo tem grande força para carrear essas afirmações veementes sobre questões tão cruciais. A possibilidade de se locomover com conforto e a baixos custos é fundamental para a realização da própria cidade. Sabemos que grande parte da população brasileira se desloca a duras penas em veículos superlotados e pelos quais paga muito. Trata-se de uma limitação enorme, uma destituição violenta.

Tenho afirmado em meus livros ? ao longo destes 20 anos de pesquisa sobre transporte no Brasil e nos Estados Unidos ? que o transporte coletivo realiza uma espécie de dessegregação, mesmo que provisória e local. Não supera, certamente, os códigos sociais, mas leva as pessoas para longe de suas vizinhanças, mistura-as, abre os lugares para os que vêm de outros, produzindo heterogeneidade.

A modicidade da tarifa, que podemos dizer que foi o ponto sensível na questão-estopim do movimento (a rejeição do reajuste de 20 centavos das passagens em São Paulo, em seguida revogado como resultado da pressão das ruas), é uma figura fundamental nesse contexto. Que o transporte custe caro é injusto e cruel. E é preciso lembrar que a modicidade da tarifa está garantida por lei, e que se estabelece igualmente que é de reponsabilidade do Estado (mesmo nas situações de concessão ou permissão da operação do transporte ao setor privado) zelar pela tarifa módica e pelas boas condições de viagem.

O mais promissor, neste momento, seria que se seguisse uma discussão mais aprofundada do conjunto de questões que compõem essa problemática da adequação do transporte coletivo. Por exemplo, a solução privada para a operação dos transportes ? que tem prevalecido nacionalmente e desde o início da implementação no transporte por ônibus e, mais recentemente, no transporte sobre trilhos (incluindo o metrô) e aquaviário (as barcas Rio-Niterói, por exemplo) ? está relacionada com o problema da tarifa alta, assim como com o das condições de viagem.  Seria importante também discutir e desafiar o subsídio ao automóvel privado nas cidades brasileiras e a opção rodoviária, predominante em todo o país e que se impôs, historicamente, a partir dos imperativos de preparar o espaço viário para o transporte privado e de contemplar as necessidades das empresas de ônibus. São questões indissociáveis e que seria importante discutir em prol de um transporte coletivo ? em todos os modais ? que fosse considerado e implementado como um serviço e um direito.

2) No subtítulo de seu livro Jornadas urbanas, de 2002, está a palavra “exclusão”. De que forma os sistemas de transportes no país excluem boa parte da população, incluindo os profissionais que trabalham neles, como motoristas e cobradores de ônibus?

Nesse trabalho, uma etnografia sobre as viagens de ônibus no Rio de Janeiro, tentei mostrar, a partir de pesquisa empírica com usuários e rodoviários, justamente essa situação de destituição imposta à população no contexto de condições exasperantes de viagem. É um tipo de exclusão para os usuários, mesmo que muitas vezes o humor venha colorir esse cotidiano duro e inventar uma fruição mesmo na extrema adversidade, como mostraram os dados etnográficos.

Ao mesmo tempo, conversas com motoristas e cobradores e a observação direta deixaram clara a situação de exploração a que eram submetidos  no contexto da operação privada. Assim, por exemplo, o não pagamento ou pagamento irregular de horas extras, a frequente imposição de dobra de turno, o controle minucioso dos minutos da jornada de trabalho e dos centavos da receita criavam um esquema muito duro para esses trabalhadores ? mesmo que, em alguns casos, suas atitudes não pudessem se explicar apenas por aí. Não me parece que a situação tenha mudado muito, ao contrário. Assinalei, nesse livro, que todos esses personagens da viagem, usuários e rodoviários, eram anexados e postos a serviço da valorização do capital. Com apoio no texto de Félix Guattari, que se propõe a ampliar a fórmula da mais-valia conforme estipulada por Marx, mostro como, no caso do capital do transporte no âmbito das viagens ônibus no Rio de Janeiro, essa anexação de diversos segmentos da população (e, em última instância, da sociedade inteira) ao padrão do capital é uma operação não só econômica, mas também política.

No livro que saiu este ano ? Trilhos da cidade: viajar no metrô do Rio de Janeiro ? mostro, também a partir de pesquisa etnográfica, como no contexto da operação privada se é tratado não como usuário, mas como cliente, e como essa passagem (que realiza, a seu modo, uma desqualificação) produz efeitos concretos na produção das viagens. No universo do uso, o transporte é um direito, enquanto que, se o uso dá lugar ao consumo, o passageiro é tratado como aquele que compra deslocamento, ele é um consumidor. De uma forma um pouco diferente do que constatei para os ônibus ?  certamente menos à la sauvage (como impõem os próprios imperativos da operação de um modal tão sofisticado como o metrô), contudo com efeitos consideráveis para a modicidade da tarifa e para as condições de hospitalidade desse equipamento coletivo ? no metrô carioca o negócio também dificulta frequentemente a realização do serviço. No Rio de Janeiro, o metrô é mais caro que o ônibus e a política tarifária que se pratica é injusta com o usuário ? por exemplo, não há descontos mesmo quando se adianta dinheiro para o operador ao se comprar o cartão pré-pago. e o cartão que vale uma passagem tem prazo de validade (48 horas a partir da compra). Desde a concessão, em finais de 1990, não se pratica a tarifa módica. Predominou a tarifa cheia ou plena, sem descontos. Compreende-se que um negócio exija tais limitações. Mas não seria isto mesmo que se deveria questionar, a tensão entre o negócio e o serviço?

Seria importante, também, trazer a discussão para o metrô neste momento de conquistas que vivemos. Os ônibus ? modal que tende mesmo a ser o mais problemático nas cidades brasileiras e ao mesmo tempo o que se encarrega da maioria das viagens ? são mais mencionados. Mas o metrô deveria ser um tranporte para todos, pois é um verdadeiro transporte de massa, com alta frequência, alta capacidade de carregamento e uma tecnologia sofisticada, ou seja, é o modal mais adequado para atender uma cidade. E atender uma cidade significa atender a sua população. O metrô não deveria ser considerado um transporte de elite ? como por vezes a própria população considera, já que percebe que, no nosso caso, de fato é, e como os operadores e o Estado (que continua sendo o responsável pelo fornecimento do serviço) parecem considerar quando praticam uma polítia tarifária injusta ou planejam o sistema com objetivos mais políticos do que sociais ou mesmo técnicos.

3) No governo Lula, parte da população viu a renda crescer, e o presidente afirmava com orgulho que eles agora poderiam comprar seus carros. A esquerda no poder, portanto, não reverteu um modelo de décadas, em que transporte privado é considerado superior a transporte público. Ainda há como mudar isso no Brasil?

O subsídio ao automóvel particular trabalha contra as cidades. São vários os componentes dessa valorização do transporte privado. Há a construção da desejabilidade do automóvel, objeto por excelência de investimento de desejo da subjetividade capitalista. Se observamos os anúncios publicitários, grandes delegados desse investimento, vemos como a propriedade de um automóvel é constantemente associada a qualidades como beleza, liberdade e poder. A redução do imposto federal cobrado na aquisição desse bem capitalista por excelência, realizada no governo Lula, é manobra da mesma ordem, visando promover a indústria automobilística às expensas da habitabilidade das cidades. Em nível local, a prioridade na construção de viadutos para escoar o fluxo cada vez mais intenso de veículos e o espaço público utilizado para estacionamento são igualmente formas desse subsídio. Esses escoadouros que atravessam brutalmente bairros inteiros nas cidades brasileiras visam antes de tudo o automóvel, e não os ônibus. Por sua capacidade de carregamento, um ônibus ocupa cinco vezes menos espaço viário que um automóvel.

É crucial romper com essa situação de privatização do espaço das cidades. A ênfase precisa se deslocar dos viadutos e se voltar, antes de tudo, para o fornecimento de transporte coletivo no contexto de um modelo a favor do serviço. Reorganizar os sistemas de ônibus das cidades brasileiras à luz dessa decisão, mas também os de metrô, onde eles existem, e os de trens urbanos. O transporte aquaviário regional, onde ele ocorre, e até mesmo o transporte interurbano, poderiam ser reestruturados com foco no usuário e na hospitalidade do espaço público.

Seria uma questão de proporcionar, mas também de limitar. Nesse caso, limitar a utilização do transporte privado nas cidades. É preciso ver como isso se daria em cada caso específico, mas dificultar ao máximo o estacionamento no espaço público urbano é uma medida utilizada em várias cidades em que a discussão sobre a importância do transporte coletivo está avançada, por exemplo, em Nova York. Por vezes, impedir o acesso dos automóveis a certas áreas e em determinados horários também se revela importante para que se priorize as pessoas e a cidade contra interesses privados.

4) Antes de se dedicar a transportes, você escreveu em 1989 a dissertação Movimento punk na cidade: a invasão dos bandos sub. Além de “vândalos”, “baderneiros” e “arruaceiros”, muitos dos que supostamente cometem atos de violência nas manifestações vêm sendo classificados de “punks”, por causa do visual. Você acha que isso faz sentido? E perguntando de forma mais ampla: há um sentido nesses atos de violência que vá além dos adjetivos usados na imprensa?

No início da eclosão das manifestações, a imprensa logo rotulou os participantes dessa forma. Não é infrequente, de fato, que os veículos de comunicação desses grandes conglomerados apresentem os acontecimentos ao público através de clichês. É uma maneira de ver o mundo, muito pobre, e ao mesmo tempo uma manobra para desvitalizar o próprio acontecimento. Há jornalistas muito bons que por vezes contemplam as nuances, mas de forma geral é este o lema desses meios, guardiões que são do status quo: parar o movimento. Na maioria das vezes, dá certo. Mas desta vez não deu. A informação correu por outras vias (na internet, por exemplo) e sobretudo as próprias pessoas nas ruas desarmaram o ardil. A imprensa teve, então, que se retratar e buscar outra forma de expressão. Tínhamos os políticos atônitos e em silêncio, a princípio, e a mídia às voltas com esse problema ? diante da veemência e do sucesso das manifestações.

Um novo recurso foi, ao tentar distinguir entre aqueles que quebravam e os outros, que chamassem os primeiros de “punks e anarquistas”. Ora, talvez tenha havido alguém com visual punk praticando os quebra-quebras, ou mesmo com outros estilos, mas o que predominou e predomina é um visual muito diferente: bermuda colorida, chinelo e, sintomaticamente, o rosto coberto com capuz ou camisetas. Nada indica que sejam punks. E é difícil crer que sejam anarquistas, pois não parecem professar coisa alguma ? inclusive, não levam cartazes ou gritam palavras de ordem. Esses termos são apenas novos clichês.

Trata-se de dois fenômenos que é preciso distinguir: aquele das manifestações em que milhares protestam e pedem soluções, firmam posições na diversidade das questões que levantam, e o que envolve os que parecem apenas destruir e saquear. Estes aproveitam a ocasião para exercer violência. Por outro lado, talvez a sua atuação não deixe de questionar, mesmo à sua própria revelia, a ordem que está sendo desafiada pelos manifestantes. Esse tipo de atuação desconcerta e, além disso, se apresenta, inevitavelmente, como um sintoma de que as coisas não estão bem. Não reivindicam nada, só querem quebrar, mas a sua presença por si só aponta os erros do governos e pede mudanças. No entanto, a violência espalha destruição e pode assustar as pessoas que vão à rua, trabalhando contra o movimento.

Um fato curioso é que, ao tentar separar os violentos e os manifestantes, a mídia tende a qualificar estes últimos como muito mansos, meninos de família que vão pacificamente à rua. Ao contrário, as manifestações atuais, se não são violentas, são contundentes na maioria de suas expressões ? nesse sentido, não são pacíficas.

Evoca o que fizeram quando das passeatas pelo impeachment de Collor. O movimento saiu com toda a força pela rua e a mídia construiu os “cara-pintadas” para encaixar o acontecimento, aparar suas arestas e torná-lo inofensivo, fazendo dos manifestantes personagens da televisão. A forma de expressão da mídia para apresentar as manifestações parece apenas substituir um clichê por outro. Busca apropriá-las, neutralizando o que têm de pontiagudo.

O movimento, contudo, continua por enquanto ativo no seu próprio caminho. Se não se sabe ao certo, no momento, o que poderá resultar desse empenho, me parece que já houve grandes ganhos. Além de se ter conseguido em alguns pontos ? sobretudo no que diz respeito justamente ao transporte ? que os próprios políticos mudassem de posição, há a grande conquista de se haver mostrado que as pessoas não se conformam, que estão inquietas e atentas.

* Janice Caiafa é antropóloga e professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É poeta e pesquisadora do CNPq. Seu livro Trilhos da cidade: viajar no metrô Rio de Janeiro saiu este ano pela editora 7Letras. Publicou ainda, dentre outros, Jornadas urbanas e Aventura das cidades, pela Editora FGV, e, pela 7Letras, EstúdioeOuro.

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