Todo poder aos sovietes

Correspondência

26.01.11

Durantes dois meses, o escritor Daniel Galera e o editor André Conti trocam cartas semanalmente neste espaço. Veja a carta seguinte de Daniel Galera aqui.

Oi, Daniel

Olha, acho o bode uma boa. Não gosto muito de frase tatuada, embora uma das minhas tatuagens – a preferida, por sinal – tenha um “It’s a world of pain” ali no meio do desenho, que é bem de cadeia. Gosto demais dessa tatuagem, fiz com dezesseis anos e lembro que muita gente me encheu o saco (é um cara com um buraco na barriga e o outro jogando sal na ferida). Um chapa dos tempos de BBS disse que a tatuagem tinha carma ruim, que eu ia ter uma vida dolorida. Nunca é fácil, pra ninguém. Mas acho que meu problema é com a frase solta, sem desenho, que nem um outro camarada que colocou um “Carpe diem” no muque, e que eu sempre achei meio brega.

Mas engraçado que eu estava pensando nisso esses dias. Acabei me mandando para um encontro de organizações populares em Jarinu, São Paulo, para fazer uma matéria, e acho que todas as pessoas lá – ou quase todas – tinham alguma tatuagem. Devido ao alto grau de politização, muitas traziam apenas frases, e comecei a achar meio infantil, tirando o sujeito que tatuou TODO PODER AOS SOVIETES no braço. A pior frase ficou com o Mandioca, que tinha um “Le desordre, c’est moi” no peito. Mas ele compensava com uma tatuagem do Monty Phyton na perna, uma silhueta do John Cleese fazendo a silly walk que eu achei bem boa demais.

Todavia, deu uma vontade danada de fazer outra tatuagem. Não sei se ainda estou um pouco tomado pelo encontro, mas pensei em fazer um Ho Chi Minh no lado de dentro do antebraço. Só fico preocupado porque ali a pele é meio molinha, e deve doer pra cacete. Sou meio bundão, você sabe, e fiz todas as tatuagens em lugares mais cascudos, evitando assim que eu chorasse em frente ao Wagnão, o artista residente do Estúdio Tat2 (“tatchu”, sacou?), ali na Galeria do Rock. Também não dá para eu pedir ao tatuador que aplique a chamada xilocaína no local da tatuagem, sob pena de passar todo o processo (e o resto da vida) sofrendo chacota e bullying do Wagnão. A ver.

Mas a viagem a Jarinu foi ótima, contra todas as expectativas. Deu uma certa saudade da militância, ainda mais que vi muita gente do meu tempo de comunista empedernido. Uns secundaristas, que ficavam quietinhos nas reuniões, agora estão lá tocando o horror. Há dez anos, eu não me imaginava fazendo outra coisa. Virei um pelego, quem diria.

Não sei se foi por isso, ou se usei isso de desculpa, mas acabei fumando um pouco em Jarinu. Já estava há mais de dois meses sem fumar. Mentira. Fumei um cigarro escondido na Mercearia, quando o Alex Rod chegou a São Paulo, e fui devidamente flagrado pelo menino Levino. E fumei uns quatro cigarros na volta ao trabalho, por nervosismo. Oquei, não fumei exatamente um pouco em Jarinu, e no último dia fui acordar o irmão do dono do bar, o único lugar nas redondezas que vendia cigarro. Derby vermelho, por sinal. Sucesso.

Fico me sentindo um verme imenso. Por um lado, eu tenho trinta anos na cara e fumar escondido é algo muito, mas muito ridículo. Ao mesmo tempo, você estava em casa quando eu tive a bronquite tabágica (o taxista falando que eu ia morrer, filho da puta) e viu como eu fiquei. Não posso mais fumar, mesmo, não tenho fôlego pra nada, vivo doente, às vezes dá aquele chiado assustador e, pombas, eu comecei com doze e peguei pesado com quinze, já deu, passou até a graça, é pura compulsão.

De alguma forma essas coisas todas estão ligadas. Eu entrei para a militância, fiz a tatuagem de carma ruim e comecei a praticar o tabagismo mais ou menos na mesma época. Tem alguma coisa aí, mas não sei direito o que é.

Abraços,

André.

PS. Ficaram bons os aparatos do Freedom, mas tirei o blurb, tudo tem limite.

PPS. Acho que vou a Porto Alegre em março, para o lançamento do Sica. Matambre na Portoalegrense e Cabaret? Saudades de todos aí.

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