Instantâneos da mente

Literatura

03.11.15

Quando o Instituto Moreira Salles recebeu em comodato o acervo de Millôr Fernandes, no início de 2013, os responsáveis pelo levantamento inicial se depararam com quase 8 mil obras, além dos arquivos pessoais do autor, meticulosamente organizados. Havia também o conteúdo de dois discos rígidos, retirados dos computadores de Millôr. Preenchendo as placas magnéticas, além de registros de trabalho, todo tipo imaginável de arquivos. Ao saber disso, fiquei matutando:

Arquivistas que trabalhavam com acervos de autores estão acostumados a lidar com um material considerado mais íntimo pelo público em geral, catalogando cartas pessoais, bilhetes, fotografias de família, até mesmo notas fiscais, qualquer coisa que tenha sido deixada para trás e que, à primeira vista, não seja de grande interesse para muita gente além da pessoa em questão, por mais notória e talentosa que tenha sido em vida. Às vezes esse material, em que pessoa pública e indivíduo se misturam, chega em caixas, aguardando pesquisa e catalogação, e às vezes – como no caso de Millôr – é recolhida in loco pelos responsáveis, fornecendo um contexto valioso.

Parte do acervo de Millôr Fernandes, ainda no local original (Cristiano Mascaro)

Mas quando falamos de material digital, do conteúdo de discos rígidos e SSDs e pendrives e cartões de memória e espaços de armazenamento na nuvem e assim por diante, a coisa vai muito mais fundo. Cada vez mais uma parte considerável dos registros de um indivíduo são digitais, e aos poucos vamos usando todas essas possibilidades como uma espécie de cérebro externo, dispositivos auxiliares.

A princípio, nada de novo: cadernetas e gavetas e baús não são exatamente invenções recentes. Todavia agora tudo se concentra em um único “lugar” (ou, vá lá, num conjunto bem delimitado e restrito de “lugares”): essa memória auxiliar vai se tornando uma espécie de mapa mental que diz muito sobre quem a armazenou, não apenas pelo conteúdo, mas pela própria forma de organização. Milhares de arquivos jogados por um terceiro dentro de uma única pasta, definitivamente, não são a mesma coisa que esses mesmos arquivos guardados da forma original, na hierarquia (ou falta dela) concebida pelo indivíduo que acumulou tudo aquilo. É um instantâneo que, visto do ângulo certo, pode fornecer um retrato muito claro de processos mentais muito privados.

E isso, ao menos para mim, é na mesma medida fascinante e assustador.

(Penso um pouco nos meus HDs, como reflexo dos HDs de qualquer pessoa. Mesmo que eu tenha perdido o hábito compulsivo de guardar com cuidado todos os emails que recebi e enviei desde que comecei a usar a internet, em 1994, ainda acumulo alguns bons terabytes de todo tipo de material. Apenas uma fração disso são arquivos de trabalho ou de caráter pessoal e/ou privado, mas a própria maneira com que o resto da minha coleção – e é assim que penso nesses dados, a minha coleção – está organizada, e os filtros que usei na “curadoria” exercida ao obtê-la e organizá-la ao longo dessas duas décadas de downloads e todo tipo de fuçação internética, também são informação. Dizem tanto sobre mim, meus interesses, minhas repulsas, como meu raciocínio funciona, os mecanismos associativos por trás de tudo que penso e, por consequência, faço. Mesmo que uma parte importante desses arquivos esteja criptografada e, desse modo, inacessível após minha morte, é como se alguém escancarasse meu crânio e desse um passeio por ali. Uma personalidade totalmente exposta, mecanismos mentais em estado selvagem, tudo tão íntimo e em tantos aspectos tão diferente do que mostramos ao mundo, seja nas interações cotidianas ou no reality show cuidadosamente montado que transmitimos todos os dias pelas redes sociais. O que alguém – considerando que alguém se interessasse pela tarefa, o que é improvável, mas me permitam o exercício – deduziria a partir de tudo isso? Que retrato seu emergiria de uma intervenção dessas, leitora? Você está guardando tudo direitinho e em segurança, leitor?).

 

***

 

É difícil (e muito, mas muito injusto) pensar sobre certo tipo de arquivismo digital, focado acima de tudo na preservação de dados, sem lembrar de Jason Scott. Com seu projeto textfiles, o americano foi o primeiro a se preocupar com a conservação e disponibilização de três décadas de textos trocados por pessoas comuns via BBSs, os sistemas baseados em acesso telefônico que em muitos aspectos serviram de ensaio para o que mais tarde se veria na internet.

Jason Scott, quando não está cuidando de arquivos, está falando sobre eles

Scott ficou mais conhecido pelo público em 2009, quando o Yahoo! anunciou que tiraria do ar o serviço Geocities. Para os usuários mais antigos da internet, apenas a menção desse nome – vamos de novo, respirem fundo: Geocities – faz brotar lágrimas salpicadas com GIFs animados, imagens de “em construção”, esquemas de cores que arruinam qualquer tentativa de leitura e textos piscantes por conta do abuso da infelizmente defunta tag blink.

Desde o comecinho, quando ainda se chamava Geopages, o Geocities concentrou boa parte da cultura inicial da web, compondo um registro riquíssimo da era pré-blogs, pré-redes sociais, pré-smartphones, enfim, o Velho Oeste. Era um serviço gratuito de hospedagem de páginas pessoais, que ao longo de 15 anos acumulou cerca de 38 milhões de sites em seus domínios. Tudo criado no braço (era preciso saber pelo menos o básico de HTML, ninguém estava de brincadeira na segunda metade dos anos 90) por pessoas do mundo inteiro entusiasmadas com a facilidade de publicação e de compartilhamento de todo e qualquer tipo de informação, das bobagens mais aleatórias a coisas até bem sérias. Mas para muitos, até mesmo para o Yahoo!, quase tudo era lixo: quem se interessaria por sites sobre animais de estimação, boy bands já quase esquecidas, compilações obsessivas sobre temas obscuros?

A resposta é: Jason Scott. Ele se interessa, e se interessa em um nível quase fanático, e acredita que acima de qualquer outra coisa tudo isso é um material histórico de interesse público. Escolher o que salvar dentre todo o caos, além de trabalho para anos e anos e mais anos e anos e mais muitos anos, sempre esbarraria no viés específico dos responsáveis por uma suposta curadoria. Em nome de uma futura arqueologia digital e de recortes que ainda não temos como prever, tudo precisa ser guardado e em estado bruto. Com isso em mente, Scott montou uma equipe e lá foram eles bem felizes, fazer backup de tudo em tempo recorde, lançando mão da mais avançada feitiçaria nerd e protegidos pelo lema “a história é o nosso futuro”.

Graças a isso o Geocities sobreviveu – o arquivo foi reunido em um único torrent (disponibilizado originalmente no controverso The Pirate Bay), e com essa bela operação de resgate o conteúdo, que de outra forma seria perdido para sempre, segue disponível em qualquer browser através de repositórios que espelham todo o entusiasmo e a ingenuidade daqueles tempos iniciais. Em 2011 Scott foi contratado como arquivista-chefe pelo Internet Archive, instituição que se dedica a iniciativas como essa e, em resumo, a armazenar, classificar e disponibilizar em acesso aberto tudo que pode ser guardado em forma digital: software, áudio, imagens, filmes, scans de material impresso.

 

***

 

Não sou arquivista, nem quero fingir entender do assunto, mas tenho uma admiração quase ofegante pelo trabalho desses profissionais – tanto os arquivistas ao estilo de Jason Scott quanto os que trabalham em instituições culturais. Penso nas diversas dificuldades recentes que se apresentaram a eles: originais de literatura, por exemplo.

Originais de Os demônios, de Dostoiévski, e A hora de estrela, de Clarice Lispector: em extinção

Com exceções cada vez mais raras, hoje escritores trabalham com processadores de texto. Quase não há mais registros materiais das diversas fases de composição de um trabalho, tudo fica consolidado em um único arquivo final. Com sorte alguém imprime e rabisca os próprios textos, e (o mais importante) guarda isso depois. Tendo como base os escritores que conheço, e não são poucos, diria que a porcentagem dos que fazem isso fica em torno de: quase ninguém.

(Como os autores podem lidar com essa realidade sem começarem a pensar de um modo tão autoconsciente que chega a ser incômodo e quase neurótico, mesmo para alguém que de certo modo usa a autoconsciência exagerada como material de trabalho? Mas acho que isso é outro texto, então vou parando por aqui).

E afora essas mudanças ainda há problemas que de início pareceriam restritos apenas a acervos materiais, como a degradação dos registros. Existe algo chamado bit rot, que é a degradação de arquivos digitais por causas variadas, de problemas de hardware a glitches de sistema. Na falta de um controle muito estrito de integridade, os arquivos corrompidos por essa espécie de mofo digital acabam sendo reproduzidos em backups e parte do acervo pode se perder.

Há também o receio de que no futuro nosso período de tempo se torne uma espécie de Idade das Trevas digital, por conta de incompatibilidades de hardware e de formatos de arquivo obsoletos – daí a importância da criação e manutenção de formatos abertos de arquivos, perfeitamente documentados. Assim, a acessibilidade fica garantida a perder de vista. Não é chatice, é uma questão de sobrevivência.

Quando deliro sobre nos acervos do futuro, criados a partir de todo tipo de registros e detritos digitais, imagino mapas mentais com acesso interativo. Sistemas que, apesar de organizados, gerenciados e curados por profissionais competentes que entendem muito bem o que estão fazendo, ao mesmo tempo também forneçam ao usuário um acesso direto e transparante ao instantâneo da mente na qual está interessado, utilizando para isso a própria estrutura de organização que essa pessoa deixou para trás, sua própria hierarquia de dados como outra forma de marca autoral.

Se isso algum dia será factível, ainda que de certos ângulos pareça um exagero, ou mesmo desejável? Não faço a menor ideia, mas vou continuar acompanhando o processo e matutando a respeito, criando minhas próprias esperanças e distopias. Mas no momento, confesso, tudo que eu gostaria mesmo de saber é o que tem dentro das pastas secretas dos HDs do Millôr. Porque – não é? Admita, vamos – todo mundo tem pastas secretas.

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