Um mundo estranho e maravilhoso – quatro perguntas a Katrina Dodson

Quatro perguntas

31.10.15

The complete stories (Contos completos), lançado pela editora New Directions com organização de Benjamin Moser, reúne em 640 páginas os 86 contos escritos por Clarice Lispector, em tradução para o inglês.

O livro recebeu um destaque especial em publicações importantes de língua inglesa, que dedicaram páginas inteiras à escritora. Convidamos Katrina Dodson, responsável pela tradução, a falar um pouco sobre o trabalho e sua relação pessoal com a obra clariciana.

Katrina Dodson, sua tradução e a mesa de trabalho

1. Como e quando se deu sua aproximação com a obra de Clarice Lispector? E como aconteceu o convite para a tradução dos contos?

Conheci a obra de Clarice pelo fim do 2003 no Rio de Janeiro, onde eu estava morando e dando aulas de inglês numa escola particular chamada Britannia. Eu estava querendo conhecer as grandes escritoras da literatura brasileira e todo mundo indicou Clarice. Eu entrei na Livraria da Travessa em Ipanema e escolhi A Paixão Segundo G.H. porque gostei do título. Levei o livro numa viagem para a Amazônia durante as férias de Natal. Lá na Amazônia, numa viagem de barco de Manaus a Belém, caí no mundo estranho e maravilhoso de Clarice. Foram três dias muito surreais: eu deitada na rede numa fila longa e apertada de redes armadas, lendo esse livro que me parecia um delírio total, naquele ambiente da movimentação constante dos outros viajantes, da música brega passando alto em cima, e com a visitação dos insetos gigantescos de vez em quando. Não entendi quase nada do livro e não sabia se era porque ainda não conhecia o português direito ou se era efeito da minha desorientação geral por estar num mundo tão diferente lá no Rio Amazonas. Foi só depois de voltar para o Rio, onde me inscrevi em alguns cursos da literatura brasileira na PUC-Rio que confirmei que o delírio era pura Clarice.

Ao longo dos anos me aprofundei mais na obra dela, como doutoranda e instrutora no departamento da Literatura Comparada na Universidade da California, Berkeley. Em 2012, conheci Benjamin Moser enquanto eu estava morando novamente no Rio de Janeiro com uma bolsa Fulbright de pesquisa para a minha tese sobre Elizabeth Bishop no Brasil. Na verdade, foi justamente através de um anúncio do IMS para uma série de palestras sobre Clarice Lispector que eu soube que Benjamin estaria no Rio. Então lhe escrevi querendo falar sobre a possibilidade de traduzir uma pequena parte da obra dela. Encontramo-nos no Parque Lage e houve empatia entre nós logo no início. Ficou claro que compartilhávamos a paixão por Clarice e as mesmas ideias sobre como traduzi-la com o objetivo de permitir que se ouça em inglês a sua voz tão particular, sem tentar suavizar as irregularidades da linguagem dela. Benjamin conheceu meu trabalho como tradutora dos jovens escritores paulistanos Vanessa Barbara e Emilio Fraia e um ano depois me convidou para traduzir os contos completos. E aquele anúncio do IMS, que desdobra num cartaz da foto de Clarice cobrindo seu rosto com as mãos elegantes, acompanhou os dois anos do meu trabalho com ela, colado à parede acima da minha escrivaninha.

 

2. Matérias elogiosas sobre The complete stories ressaltam a semelhança de Clarice Lispector com importantes nomes da literatura universal, como Kafka, Virginia Woolf e Vladimir Nabokov. Você poderia apontar semelhanças e diferenças entre Clarice e eles?

Sempre há esse impulso na imprensa de colocar os escritores novos ou menos conhecidos entre os parâmetros reconhecíveis. É um pouco como a necessidade do explorador francês Marcel Pretre de dar nome ao mistério e de apresentar seu “descobrimento” ao público como “Pequena Flor” no conto “A menor mulher do mundo.” Por um lado, acho que as comparações alcançaram uma altura absurda: temos uma cacofonia meio maluca de Kafka, Woolf, Nabokov, Tchekhov, Joyce, Sartre, Wittgenstein, Gertrude Stein, Edith Wharton, Colette, J.M. Coetzee, Angela Carter, até Ovídio, Rabelais e Groucho Marx!

Por outro lado, é sinal de que a escrita de Clarice possui facetas inúmeras que possibilitam este carnaval de referências. Ela tem um gênio indefinível que se remete aos grandes escritores da literatura internacional. Como Kafka, ela brinca com o absurdo que ameaça a existência cotidiana e o estranho que invade o familiar, num estilo sutil, espantoso e sinistro ao mesmo tempo. Vejo muito de Woolf na maneira em que Clarice interliga o interior e o exterior da experiência quando representa a interação dos pensamentos com as sensações do corpo. Também há semelhanças entre elas na ênfase na experiência de mulheres—mães, filhas, esposas, viúvas—enquanto enfrentam a autoridade e a carência dos homens e vacilam entre o impulso de seguir a vida livre e artística e o reconhecimento dos laços de família. O que mais me lembra de Nabokov em Clarice é uma forte sensualidade na linguagem, ora bela ora brutal, que casa a prosa com a poesia.

Mas claro que quem se aprofunda no trabalho dela vê que há um olhar, uma abordagem, uma gramática, e todo um universo espiritual que só pertence a Clarice. A repercussão da obra dela no exterior pegou com tanta ferocidade durante os últimos meses que não vai demorar para ela se tornar a própria referência citada para situar os outros.

 

3. A obra clariciana é marcada por uma linguagem que, embora pareça simples, tem uma forte carga de vertigem. Clarice foi considerada autora hermética pela crítica desde que publicou seus primeiros títulos. Que método ou cuidado você teve para fazer a tradução mantendo as mesmas imagens?

É verdade que Clarice criou imagens de originalidade abrupta, como “o delicado abismo da desordem” ou “aquele ponto vazio e acordado e horrivelmente maravilhoso dentro de si.” Um grande desafio em traduzi-la foi acertar quando ela estava inventando ou deformando uma frase ou palavra, e quando a linguagem participava em formas já conhecidas em português. A linguagem dela é tão distinta mas de maneira sutil e às vezes soa muito natural. Então tomei cuidado para reproduzir o efeito de estranhamento em inglês quando surgia em português, mas também quis seguir os momentos mais coloquiais.

Quando encontrava frases muito evocativas mas misteriosas que não encontrava num dicionário ou na Internet, perguntava aos amigos brasileiros, “Você já ouviu isso ou foi Clarice quem inventou?”, e eles quase sempre me respondiam, “Parece algo do português mas é de Clarice mesmo.” Uns exemplos são: um bêbedo com um “queixo fugitivo,” uma mulher que espera o marido “nos seus colares vazios,” e a narradora de “Tanta mansidão” que observa, “Nunca pensei que o mundo e eu chegássemos a esse ponto de trigo.” Não sabia se esse “ponto de trigo” era algo literal ou sugeria um ponto de amadurecimento figurativo. Naqueles momentos, eu resistia ao desejo de escrever algo mais compreensível ou de simplesmente cortar o inexplicável, como foi feito nas traduções anteriores. Prefiro deixar o mistério aberto, mesmo se incomodar o leitor. Assim fica mais clariciano.

Outro elemento distinto que tentei preservar na tradução é o ritmo. Clarice usa muita repetição e uma cadência hipnótica em certos trechos que conferem um sentido além do semântico. Grande parte do poder e da poética da obra dela reside no impacto físico das suas palavras. Por isso, achei importante traduzi-la tanto pelo ouvido quanto pelo cérebro.

 

4. Durante a última entrevista concedida ao apresentador Julio Lerner, na TV Cultura, Clarice afirmou, em relação à dificuldade de ser lida, que “não entender não é uma questão de inteligência, e sim de sentir, de entrar em contato”. Dos quase 90 contos publicados em The complete stories,há algum com o qual você mais se identificou, mais “entrou em contato”?

Quanto a Clarice, a questão da inteligência é complicada. Nesse contexto, acho que ela estava se referindo à inteligência estruturada pelo estudo acadêmico, uma inteligência que se organiza pelas regras da gramática e da lógica racional. Quem ler Clarice querendo este tipo de lógica, que oferece as conclusões fixas, vai ficar sem jeito. Mas ela escreve com uma inteligência complexa que se reúne a uma intuição profunda e a uma sensibilidade vasta. O que acho genial na obra dela é que há vários pontos de entrada, independentemente do nível da erudição—o único requisito é ter o espírito receptivo.

Minha mãe cresceu no Vietnã e não é pessoa intelectual, mas gosta de ler e sentiu uma conexão forte com os contos de The complete stories, sobretudo “Amor” e “A imitação da rosa.” Isso me espantou porque eu também me sinto muito próxima a estes dois, embora nunca tenha discutido o assunto com ela.

Em geral, tenho uma forte afinidade com as mulheres meio doidas de Clarice, aquelas que vivem intensamente dentro das próprias cabeças, sejam adolescentes como Gertrudes em “Gertrudes pede um conselho”, e Sofia em “Os desastres de Sofia,” sejam mães casadas como Ana em “Amor”, Laura em “Imitação,” e a portuguesa vaidosa em “Devaneio e embriaguez duma rapariga,” sejam velhinhas, como em “Feliz aniversário” e em “A procura de uma dignidade”. Entrar na perspectiva das mulheres claricianas foi pesado às vezes, mas ela também sabe retratá-las com amor e com um elemento de exagero bem-humorado que remete às mulheres de Pedro Almdóvar, coisa que abre uma janela para respirar.

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