Um criador brasileiro

Cinema

01.10.12

 

Alberto Cavalcanti fotografado por Peter Scheier (Acervo do IMS)

1. Em qualquer lugar onde estivesse, um brasileiro

Em dezembro de 1976, num texto sobre Alberto Cavalcanti, cujos filmes serão exibidos no IMS durante o Festival do Rio, Jorge Amado (citado no livro Alberto Cavalcanti, o cineasta do mundo, de Sérgio Caldieri, Editora Teatral, Rio de Janeiro, 2005, página 54) lembra que o fato de Cavalcanti “ter trabalhado durante tantos e tantos anos longe de sua pátria, sem condições de realizar tarefa criadora em seu país de origem, sendo uma espécie de cidadão do mundo, explica a realidade brasileira daquela época. Por outro lado, é necessário constatar o fato de ter Alberto Cavalcanti se conservado profundamente brasileiro, portador de algumas qualidades fundamentais de nosso povo. Em qualquer lugar onde estivesse, levava o Brasil consigo. Em todos os seus filmes, do primeiro ao último, realizados em território estrangeiro, em distintos países, num contexto cultural distante do nosso, existe evidente marca brasileira pois é a criação de um homem que, tendo vivido uma densa experiência europeia, vária e contraditória, manteve incólume sua condição nacional. Foi sempre, em cada momento, um criador brasileiro, trabalhando longe de seu chão nativo, mas guardando fidelidade constante e fundamental às suas raízes”.

2. Em lugar do correio, uma carta

Em novembro de 1951, na conclusão do terceiro capítulo de seu Filme e realidade (Livraria Martins Editora, São Paulo, 1953, página 76), Alberto Cavalcanti diz que “não é senão à base do documentário que o nosso cinema representará o seu papel na vida do Brasil”, e que sem cinema “não pode existir, hoje, uma grande nação”. Depois, repete as normas de conduta para os realizadores de documentários – os 14 NÃO – que, “baseado na minha experiência neste terreno, remeti aos jovens diretores dinamarqueses, em 1948”:

NÃO trate de assuntos generalizados: você pode escrever um artigo sobre os correios, mas deve fazer um filme sobre uma carta.
NÃO se afaste do princípio segundo o qual existem três elementos fundamentais: o social, o poético e o técnico.
NÃO negligencie o seu argumento, nem conte com a chance durante a filmagem: quando o seu ar­gumento está pronto, seu filme está feito; ape­nas, ao iniciar a sua filmagem, você o reco­meça novamente.
NÃO confie no comentário para contar a sua história: as imagens e o seu acompanhamento sonoro devem fazê-lo; o comentário irrita, e o comen­tário engraçado irrita ainda mais.
NÃO esqueça que, quando você está filmando, cada tomada é parte de uma sequência e cada se­quência é parte do todo: a mais bonita das tomadas fora do seu lugar é pior do que a mais banal.
NÃO invente ângulos de câmara, quando não são necessários: ângulos gratuitos são dispersivos e destroem  a emoção.
NÃO abuse da montagem rápida; um ritmo acele­rado pode ser tão monótono quanto o mais pomposo “largo”.
NÃO use música em excesso: se você o faz, a au­diência deixa de ouvi-la.
NÃO sobrecarregue o filme com efeitos sonoros sin­cronizados: o som nunca é melhor do que quando empregado sugestivamente. Sons com­plementares constituem a melhor banda sonora.
NÃO encomende muitos efeitos óticos, nem os faça complicados: fusões, “fade-ins” e “outs” fazem parte da pontuação do seu filme. São os seus pontos e vírgulas e os seus pontos finais.
NÃO filme muitos “close-ups”: guarde-os para o clí­max. Num filme equilibrado eles vêm natural­mente; quando em demasia, tendem a sufocar e perdem toda a significação.
NÃO hesite em tratar elementos humanos, e rela­ções humanas: seres humanos podem ser tão belos quanto os outros animais, tão belos quan­to as máquinas ou uma paisagem.
NÃO seja confuso no seu argumento: um assunto verídico deve ser contado clara e simplesmente. No entanto, clareza e simplicidade não ex­cluem necessariamente a dramatização.
NÃO perca oportunidade de experimentar: o pres­tígio do documentário só foi conseguido pela experiência. Sem experiência o documentário perde o seu valor. Sem experiência, o documen­tário deixará de existir.

3. Em lugar da garrafa de leite, um tijolo

 

Cena de Nas garras da fatalidade

Nas garras da fatalidade (They made me a fugitive). Sessenta e cinco anos depois de sua realização, o título desse filme que integra a homenagem a Alberto Cavalcanti no Festival do Rio parece uma imagem com um certo quê de ironia – sobretudo se tivermos na memória a observação de Glauber sobre Cavalcanti: “Ninguém foi expulso do cinema brasileiro a não ser o próprio Alberto Cavalcanti, que teve de arrumar as malas e retomar o seu prestígio na Europa” (em “Cavalcanti e a Vera Cruz”, terceiro capítulo de Revisão crítica do cinema brasileiro, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1963, página 50). Cavalcanti veio a São Paulo dois anos depois de They made me a fugitive, em 1949, “a convite do Dr. Assis Chateaubriand e do Professor Bardi”, para “uma série de dez conferências no Museu de Arte”, e foi então chamado por “um grupo de capitalistas daquela cidade para assumir o posto de Produtor-Geral da Companhia Cinematográfica Vera Cruz”. A difícil experiência com a Vera Cruz, conclui, “foi, em parte, aproveitável”. Depois da Vera Cruz, e antes do retorno à Europa, três filmes no Brasil, um deles, O canto do mar (1954), também se exibe no Festival, que, ao lado de um conjunto de filmes curtos (lembremos os mais destacados: Rien que les heures, 1926; En rade, 1928; Pett and Pott, 1934, Coal face, 1935), reúne cinco filmes longos realizados na Inglaterra, nos anos 1940, pouco antes da vinda para o Brasil: Went the day well?Champagne CharlieThe life and adventures of Nicholas NicklebyFor them that trespass e Nas garras da fatalidade.

 

Cena de Nas garras da fatalidade

Deste último, a lembrança de um incidente depois do filme concluído, anotada quase ao final de Filme e realidade:
“Em Londres, os censores proibiram que, numa das lutas de Nas garras da fatalidade, o personagem Clem (Trevor Howard) atirasse uma garrafa de leite vazia na cabeça de Narcy (Griffith Jones), o chefe do mercado negro. Como eu pedisse as razões, esclare­ceram-me que a cena ensinaria as crianças a jogarem gar­rafas de leite umas nas outras. Pedi, então, indicações sobre os objetos que poderiam ser usados como projetis e me informaram: ?Um tijolo’ (sic). O resultado é que a cena foi filmada duas vezes, as duas versões com­paradas e discutidas seriamente com os censores e, como discretamente eu sugerisse que um tijolo era mais fácil de encontrar na rua do que uma garrafa, e muito mais perigoso, eles acabaram por aceitar a garrafa. Esta dúvida custou à companhia produtora, em refilmagens, algumas centenas de libras”.

O incidente, assim como o título, pode ser visto como uma metáfora do cinema de Cavalcanti: trocou tijolos por garrafas de leite.

* José Carlos Avellar é coordenador de cinema do Instituto Moreira Salles.

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