Um escritor mais inteligente que o necessário

Literatura

16.03.12

Musil tinha razão em não reconhecer,
em pessoa alguma, distinção superior à sua;
dentre aqueles que eram considerados
escritores não havia em Viena,
e talvez nem em todo o domínio da língua alemã,
um único que tivesse sua importância.
(Elias Canetti, O jogo dos olhos)

Há setenta anos morria, no exílio de Genebra, o romancista austríaco Robert Musil. O público de hoje conhece a admira Musil pelo seu gigantesco romance O Homem sem Qualidades. Inacabada, essa obra é hoje considerada o paradigma do inacabável, quintessência da estrutura fragmentar do mundo e da estética (Pós-) moderna. Musil, no entanto, não pensava assim e, na ilusão de ter ainda muitos anos pela frente, trabalhava para fechar o arco – com início, meio e fim – de sua obra. Construção e composição, artesania e estilo, conteúdo e forma acabados o preocupavam mais do que as experimentações dos expressionistas e decadentistas.

A obsessão de aproximar-se dos sentimentos e estados mais bizarros quase lhe custou a saúde física e mental nos anos que se seguiram ao seu primeiro sucesso literário. Musil escrevia com grandes intervalos e, já famoso pelo imenso sucesso de sua primeira obra, As confusões do jovem Törless (1906), terminou sua segunda obra, duas novelas reunidas sob o título Vereinigungen, Núpcias, somente em 1911. Törless captou o interesse do público mais que suas obras posteriores, sem dúvida devido ao modo calmo, quase frio de representar o vazio da adolescência, no qual se desenha, num jogo de permutas, as fantasias sexuais e as experimentações sado-masoquistas de quatro alunos de um colégio militar. Embora esse romance possa ser lido como um “estudo de caso” do conceito freudiano da perversão polimórfica característica da sexualidade infantil (o ensaio de Freud é de 1905), Musil não se deixa enquadrar nos rótulos que já no seu tempo lhe foram atribuídos: “o mais sexual dos autores vienenses”, o freudiano, proustiano, joyceano…..

A  primeira guerra mundial interrompeu, de modo decisivo, o trabalho criativo de Musil. Sua obra posterior abandona por um momento a intensidade da exploração das regiões mais íntimas da alma e do corpo para analisar a sociedade em todas as suas dimensões. Mas não se limita a satirizar a queda do Império Austro-Hungaro, como uma leitura superficial do Homem sem Qualidades pode fazer pensar. Musil usa o distanciamento irônico para rastrear (na sua própria experiência, na dos seus próximos e num vasto acervo de leituras e observações) a rede das pequenas causas negligenciadas que criam a base para os grandes eventos. Ele registra suas próprias ilusões e falhas com a mesma impiedosa lucidez que ilumina os deslizes morais e sentimentais dos outros – o que dá à sua obra um cunho desconcertante de auto-biografia ficcional. Suas narrativas são tanto registros dos próprios erros e acertos como dos de seu tempo. Mais do que isto, são relatos da desoladora propensão de repetir os erros cometidos no passado e de fechar os olhos às lições da história.

Sua obsessão pela precisão – ele fala do método dos mínimos passos – resultaram em observações e análises que des-dramatizam os eventos aterradores. Sem gestos teatrais ou dramáticos anúncios do “ovo da serpente”, Musil mostra os pequenos sinais que preparam o que estava por vir na sociedade e na política do entre-guerras. Os Diários estão repletos de agudas análises dos diversos aspectos do cotidiano do Austro-fascismo e do Nacional-socialismo – do desmoronamento rápido das instituições liberais e do endurecimento jurídico e propagandístico, e do luxo malsão de rituais encenatórios – que plantam as raízes da “Renovação do Espirito alemão” que Hitler e seu entourage levariam até as últimas consequências. Musil observa, estarrecido, como a ideologia “Sangue e Solo” penetra em quase todas as dimensões da vida prática, intelectual e artística. É admirável a precisão com que Musil registra e transcreve no seu diário os acontecimentos cada vez mais assoladores dos anos 1930, analisando os argumentos do governo (contra os judeus, contra os intelectuais, contra a arte degenerada, o obsceno e o patológico e outros) e respondendo com contra-argumentos detalhados. Mesmo assim, Musil é muitas vezes criticado, mesmo hoje, por não engajar-se, claramente, numa causa política, ideológica e humanitária. Ele respondeu a essa crítica:

“O poeta fala: Eu nunca fui partido. Eu sempre fui solitário. Eu fiz meu dever. Mas agora querem me impedir de fazê-lo. Por isto, estou aqui [num mato sem cachorro].”

Musil sabia antecipadamente de que estava falando: do risco da fusão nefasta da arte na política, do servilismo ideológico que levou grandes artistas como Isaak Babel, Eisenstein e Ilya Ehrenberg a submeter suas visões artísticas a serviço de máquinas ideológicas, máquinas que, poucos anos depois os humilhariam nos processos de Moscou, antes de prender, torturar e executá-los. Musil falou alto e claro do seu compromisso com a literatura também no Congresso pela defesa dos escritores em Paris, em 1935, organizado pelo PC francês, com intervenção direta de Stalin e de sua máquina de propaganda. Enfrentando não só o fascismo na Áustria e na Alemanha, mas também os intelectuais sovieticos – Musil analisa precocemente os mecanismos mais sutis de enquadramento pelo controle da cultura, da literatura e, sobretudo, dos hábitos linguísticos cotidianos. Num clima político que parecia exigir o elogio dos programas culturais soviéticos como a única alternativa, a crítica musiliana da máxima “O fim justifica os meios”, bastou para declará-lo como “saboteur”. O escritor e tradutor Édouard Roditi, que ouviu o discurso de Musil, destacou no seu relato comemorativo dos anos 1960 aquele ponto que suscitou maior indignação: “Somente o fato de que comunismo e fascismo foram deste modo associados, suscitou o maior escândalo no Palais de la Mutualité.”

O engajamento de Musil era com a arte, com a literatura concebida como domínio autônomo, ideia que muitos críticos hoje consideram ultrapassada. Mas, no seu tempo e contexto, essa postura estética era também ética:

“A literatura não tem como tarefa descrever o que é, mas aquilo que deve ser, ou aquilo que poderia ser, enquanto solução parcial daquilo que deve ser. Em outras palavras: Literatura fornece imagens simbólicas para a reflexão (Sinnbilder). Ela é doação de sentido (Sinngebung). Ela é interpretação da vida (Ausdeutung). A realidade é para ela o material. (Mas: ela dá também modelos (Vorbilder). Ela oferece propostas parciais).”

Eis o que Musil escreveu para um prefácio suprimido para sua Obra póstuma publicada em vida (Nachlass zu Lebzeiten), lançada em 1936. Não só nos seus ensaios críticos e discursos, também nas passagens potencialmente mais líricas e intensas, Musil sempre confronta o leitor com reflexões precisas e procura dar forma e prumo aos sentimentos. Este esforço fica claro também no volume Obra póstuma, que Musil via como o seu testamento artístico. As histórias minúsculas desta obra publicada em 1936  são exemplos da complexa tessitura que une corpo, alma e mente na prosa poética de Musil, de uma “prosa” que se move entre parábola bíblica, poesia simbolista e reflexão filosófica, entre fábula, fragmento nietzschiano e equação matemática. Um parágrafo de “Papel de Moscas” basta como exemplo destas meditações sobre a vida que ora parece nos acolher suave e calorosamente, ora se parece com o suplício moroso de areias movediças:

“É uma sensação muito suave, desconcertante, como se, caminhando no escuro de pés descalços, pisássemos sobre algo; não é nada além de uma obstrução fofa e quente, porém já é algo para o qual, pouco a pouco, flui a terrível essência humana; e vagarosamente reconhecemos esse algo como uma mão, deitada aí com seus cinco dedos – cada vez mais nítidos, eles nos agarram com firmeza.”

Não poderia ser mais alemão esse exercício senti-mental de tirar proveito do rigor filosófico para fins poéticos. É a marca de autores como Kleist, Musil e Canetti a mescla de intuições remotas com minuciosas reflexões. No caso de Musil, a precisão da análise racional somente recua quando os conceitos ficam abstratos demais para o fenômeno singular. Saber lutar com as duas armas, as da intuição e as do conceito – eis o ideal de Musil, e a obstinação com que ele o persegue leva a alturas incomuns uma nova prática da literatura.

Era abril de 1942. No meio da Segunda Guerra Mundial, com nenhum fim à vista, Musil se encontrava, interna e externamente, num beco sem saída. Por ironia do destino, o escritor da maior importância “em todo o dominio da língua alemã” morreu no maior isolamento, quase no esquecimento – se acreditarmos em suas anotações de diário e nas apreciações dos anos posteriores. Um dos entraves para um apreço mais amplo e popular era, sem dúvida, a inteligência aguda, precisa e às vezes cruamente lúcida de Musil. Quando Musil disputava um prêmio literário – geralmente contra concorrentes afinados com as instituições fascistas e nazistas -, os dignatários das agremiações literárias não se constrangiam em declarar que “Musil era inteligente demais para ser um verdadeiro poeta”. O  patriotismo populista do fascismo austríaco não era menos vigilante que o alemão, ambos sempre atentos para canalizar os prêmios para autores católicos como Max Mell (1927), ou engajados com o espírito do tempo, como Ina Seidel ou Hermann Stehr (1933).

Musil sofreu também  da incompreensão dos maiores intelectuais de sua época. Em uma carta a Scholem de 23 de maio, 1933, Walter Benjamin escreve que ele resolveu “dispensar” Musil pelo excesso de agudez: “Dispenso esse autor com a constatação de que ele é mais inteligente que o necessário”. Hermann Broch, que admirava seu colega e o sustentou secretamente nos anos de maior miséria, lamentou que a racionalidade de Musil tivesse destruído o romance por excelência [O Homem sem Qualidades]. Thomas Mann, num esforço de turbinar as vendas dos livros, teve que atribuir a O Homem sem Qualidades virtudes “poéticas”, “piedosas” e outras que o romance certamente não tem.

*Kathrin Rosenfield nasceu na Áustria e mora no Brasil desde 1985. Leciona na área de Filosofia e Letras na UFRGS, e é autora de livros como Antigone: De Sophocle à Hölderlin (Galilée) e Desenveredando Rosa (2006). No momento, prepara um livro sobre Robert Musil (com traduções e ensaios críticos).

* Na imagem da home que ilustra esse post: o escritor Robert Musil, em 1925.

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