O céu se equilibrava em nuances de azul e amarelo. A brisa, úmida, soprava as folhas da palmeira que se colocaram a balançar suavemente. As águas do rio refletiam o casario às suas margens. A bordo de um barquinho a remo as pessoas são conduzidas aos seus destinos, e nesse breve passeio vemos o contraste entre as vestes simples daquele que conduz a embarcação em relação à elegância dos demais passageiros. À beira do rio, aproveitando a sombra da palmeira, um artista registra a singela cena cotidiana.
Parte do acervo de Iconografia Brasileira do Instituto Moreira Salles, a bucólica imagem integra o álbum de litografias Memória de Pernambuco – álbum para os amigos das artes, do suíço Luiz Schlappriz, que traçou em pouco mais de 30 imagens um engenhoso panorama de paisagem, tipos e costumes do Recife do século XIX. O IMS conta com 26 das 33 imagens publicadas no álbum.
A respeito de Schlappriz, pouco sabemos. Além de suíço, temos notícia de que chegou ao Recife em março de 1858, no intuito de acompanhar um familiar que veio à cidade desempenhar funções diplomáticas em nome de seu país natal. Schlappriz, por sua vez, atuou no Brasil como pintor e litógrafo, contribuindo também com caricaturas para alguns jornais literários e humorísticos do Recife.
O segundo personagem-chave relacionado à execução do álbum Memória de Pernambuco é Francisco Henrique Carls. Alemão de origem, aportou no Recife em 1859. Passados dois anos, Carls funda em 1861 um dos mais célebres estabelecimentos litográficos da cidade, onde, munido de bons equipamentos e profissionais, executava a impressão de documentos variados, como mapas, diplomas e circulares, dentre outros, e se tornou conhecido por oferecer reproduções de qualidade excepcional.
Foi no ano de 1863 que a litografia Carls iniciou a publicação do álbum Memória de Pernambuco, originado através da parceria firmada entre Luiz Schlappriz, responsável por desenhar e litografar as ilustrações, e o editor alemão, encarregado de impressão e distribuição (a comercialização ocorria sob um esquema de assinatura, e as pranchas eram disponibilizadas para venda assim que o artista as finalizava). A ocasião assinala a primeira vez em que uma coleção de gravuras foi inteiramente litografada no Recife. Além disso, tal conjunto se torna especial devido ao seu apuro técnico, variedade de estampas, e indiscutível mérito artístico-histórico, uma vez que apresenta numerosos recantos recifenses da época, como o Campo das Princesas (largo do palácio), que hoje abriga o edifício sede do governo de Pernambuco, e a casa de detenção, revitalizada e transformada em polo cultural desde 1976.
Em sua unidade, essas obras nos oferecem um convite irrecusável a conhecer a vida e o comportamento daqueles que habitam dentro dessas imagens, e principalmente a inferir que o tempo onde viviam passava tão vagaroso que nada seria mais natural do que o congelar em uma gravura. Num período onde fervilhava a circulação de imagens do Rio de Janeiro (local que também concentrou boa parte da atividade litográfica do Império), as pranchas do álbum de Carls e Schlappriz têm a propriedade de orientar o olhar do passado, e do presente, a uma outra geografia.
* Jovita Santos de Mendonça é assistente cultural da Coordenadoria de Iconografia Brasileira do IMS.