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No cinema

16.12.11

Run for cover” (grosso modo, “corra para o abrigo”) era a máxima de Hitchcock para os momentos de crise ou impasse criativo, em que não sabia muito bem o que filmar em seguida. Ele queria dizer com isso a volta ao feijão com arroz, a alguma fórmula já testada e aprovada.

A expressão me veio à lembrança ao ver As canções, o novo documentário de Eduardo Coutinho.

O cineasta emplacou nos anos 2000 uma sequência impressionante de filmes extraordinários: Edifício Master, O fim e o princípio, Jogo de cena e Moscou, sem falar de Peões e da insólita experiência de Um dia na vida, que passa em revista 24 horas de programação da TV aberta brasileira. 

Isso dá um filme?

Cada um desses trabalhos representou em alguma medida um salto no escuro, quando não uma ruptura com o que Coutinho havia realizado antes. Quem conhece o diretor e seu rigor estético e ético (para ele as duas coisas não se separam) sabe da angústia e das dúvidas que o assaltam em todas as etapas de cada um desses filmes, do planejamento à mesa de edição. “Isso dá um filme?” é a pergunta que o persegue.

Coutinho costuma criar regras mais ou menos rígidas – ou um dispositivo, como ele prefere chamar – para cada documentário que realiza. Por exemplo, em Babilônia 2000 tudo devia ser filmado na favela do morro Babilônia ao longo do dia 31 de dezembro de 1999. Em Edifício Master, todos os personagens deveriam ser moradores do prédio em questão e a câmera não poderia abandonar suas dependências. Em O fim e o princípio, o método era não ter método: sair pelos vilarejos do sertão em busca de pessoas com histórias para contar.

Pois bem. Depois desses sucessivos tours de force, em As canções, ao menos aparentemente, Coutinho resolveu palmilhar um terreno já conhecido, ainda que o explorando por um novo viés. É o seu run for cover.

Como em Jogo de cena, pessoas selecionadas depois de convocadas por anúncios de jornal falam sobre sua vida num palco de teatro vazio, diante da câmera – sim, como acontecia em Jogo de cena, só que lá se tratava só de mulheres e havia um ardiloso embaralhamento entre depoimentos “reais” e depoimentos encenados por atrizes.

Outra diferença está indicada logo no título: agora todos os personagens são instados, desde o anúncio de convocação, a cantar uma canção que seja marcante em sua vida.

Em praticamente todos os filmes anteriores de Coutinho há pelo menos um momento em que alguém cantarola uma música para expressar melhor um sentimento ou evocar um momento particular de sua biografia.

Em As canções, aquilo que nos documentários anteriores era fortuito, quase acidental, torna-se a regra básica, o dispositivo. O acaso se converte em necessidade.

 

Expressão e representação

Há duas coisas a notar aí. A primeira é que, por recorrer sistematicamente à música – e em especial à canção romântica popular -, As Canções talvez seja o filme mais imediatamente palatável de Coutinho, aquele que potencialmente pode comover o público mais amplo. Se melodrama = drama + mélos (melodia), seria As canções um melodocumentário? Embora o melo aqui se refira a música, e não a “meloso” ou “melado”, o próprio Coutinho já qualificou seu novo longa de “um filme sentimental”.

Mas há mais que isso. Encarando a filmografia do diretor como uma obra em progresso, talvez seja possível ver As canções não como um passo atrás (para antes de Jogo de cena, por exemplo), mas como um “passo ao lado”, uma maneira diferente de explorar as ambiguidades do depoimento pessoal, o esconde-esconde entre expressão e representação que há em cada fala humana, especialmente diante de uma câmera.

Em outras palavras: a música ajuda aqui a confirmar por outras vias uma ideia que Coutinho vem desenvolvendo há tempos: a de que os entrevistados, mais do que se “revelar”, se constroem na tela, diante de nós.

A canção popular é parte significativa dessa construção. Fornece à autoimagem idealizada do entrevistado um cenário, um enredo, uma tonalidade dramática – e ao mesmo tempo torna essa imagem imediatamente acessível a todos, facilita a identificação entre espectador e personagem.

“Essa música é a história da minha vida”, diz um entrevistado – e passa a contar em seguida fatos biográficos que muitas vezes não condizem nem um pouco com a letra ou o espírito da canção em questão. O descompasso entre o real vivido e o real construído idealmente ganha evidência, salta aos olhos (e sobretudo aos ouvidos).

Apropriação do cancioneiro

Falamos até agora da relação de As canções com a obra pregressa de Coutinho, mas outra linha interessante de abordagem talvez seja a da intersecção do cinema do diretor – quase um gênero à parte – com uma das vertentes mais fecundas do documentário brasileiro recente, os filmes em torno da música popular.

Depois de dezenas de documentários que abordam, de um modo ou de outro, a criação dessa música (filmes sobre Cartola, Vinicius de Moraes, Humberto Teixeira, Novos Baianos, Wilson Simonal, Arnaldo Baptista, Tom Zé etc.), começam a aparecer obras focadas na sua recepção, na maneira como os indivíduos se apropriam desse rico patrimônio.

As canções e o inédito comercialmente Vou rifar meu coração, de Ana Rieper (sobre o cancioneiro brega), são exemplos desse novo enfoque. Aqui, uma entrevista da diretora, ilustrada por trechos do filme:

 

 

O bem recebido Uma noite em 67 talvez tenha feito a ponte entre essas duas esferas, a da produção da música popular e a do seu consumo, ou antes, do seu impacto. Virá daí o seu encanto?

 

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