Uma vida sem sonhos e sem ambições

Cinema

05.09.13

No próximo dia 6 de setembro o Instituto Moreira Salles lança o oitavo título de sua coleção de DVDs: O emprego (Il posto, 1961), do italiano Ermanno Olmi. Por ocasião do lançamento, o IMS-RJ realiza no dia 8 de setembro o especial Ermanno Olmi, com a exibição de O emprego e outros dois títulos: A árvore dos tamancos (1978) e A lenda do santo beberrão (1988).

Ermanno Olmi

 

O cineasta italiano Ermanno Olmi

Filho de um camponês e de uma operária, funcionário de uma empresa para a qual realizou curtas-metragens, Ermanno Olmi, como outros diretores que o antecederam (Roberto Rossellini, Michelangelo Antonioni) ou de sua geração cinematográfica (Francesco Maselli, Vittorio De Seta), estreou como documentarista. As origens familiares e a experiência profissional anterior serão o húmus de sua produção de ficção e estão presentes, tanto no conteúdo quanto no estilo, em seu segundo longa-metragem, O emprego (Il posto), saudado no Festival de Veneza de 1961 como uma das obras que vinham renovar o cinema italiano, ao lado de Desajuste social (Accattone), de Pier Paolo Pasolini, e Bandidos em Orgosolo (Banditi a Orgosolo), de De Seta.

Ao narrar a história de Domenico, um rapaz de origem camponesa que consegue um trabalho na cidade grande, O emprego mostra toda a esqualidez de uma vida condicionada por uma rotina metódica e repetitiva. Uma vida sem sonhos, nem ambições: Antonietta, a colega pela qual se interessa, acaba não correspondendo à sua afeição; o emprego, uma vez conseguida a vaga almejada, não oferecerá novas perspectivas. Um cotidiano vivido da forma mais comezinha, pois o contato com uma realidade cosmopolita como a de Milão não representará o alargamento do próprio horizonte, uma vez que o espaço urbano, no qual todas as manhãs trens e bondes despejam um enorme contingente humano, só o “acolhe” enquanto massa produtiva – como na sequência em que Domenico, na companhia de seu pai e de outros trabalhadores que madrugaram, se dirige para seu primeiro dia na firma.

Um dos raros momentos em que a narração não se deixa levar pela condição de solidão, a que todos parecem condenados, é ao focalizar a pausa para o almoço, no dia dos testes. Depois de uma refeição frugal, Domenico e Antonietta passeiam pelo centro. O frescor dos dois jovens intérpretes remete ao do casal de O teto (Il tetto, 1956), de Vittorio De Sica, o qual, apesar das condições adversas que enfrenta, busca uma alternativa. Em O emprego, ela não existe e as vitrines das lojas que os dois olham, bem como os canteiros de obras, dos quais observam a cidade que cresce, reforçam a ideia de exclusão do bem-estar burguês dessas camadas sociais alojadas nos bairros periféricos ou nos lugarejos ao redor da capital da Lombardia.

É uma sequência extremamente instigante, em que o filme parece deixar de lado a ficção para registrar a realidade, como havia acontecido também numa passagem de O teto, quando, no ônibus que está levando o jovem casal de volta para Roma (depois da noite de núpcias na aldeia da garota, à beira-mar), a câmera abandona os protagonistas e, durante alguns instantes, passa a focalizar, por uma das janelas do veículo e independente do olhar deles, só a paisagem marítima e, por meio de fusão, a paisagem urbana que vai se desenhando na periferia da cidade. Ou ainda, de modo mais radical, em outra obra de De Sica, Il funeralino, eliminada da edição final de O ouro de Nápoles (L’oro di Napoli, 1954), por não ser espetacular e não contar com astros consagrados entre seus intérpretes, como os demais episódios. O cortejo fúnebre, que percorre parte da cidade, serve de pretexto para investigar, de forma quase documental, o comportamento do povo napolitano no enterro de uma criança.

O emprego (1961)

 

O emprego (1961)

Evocar De Sica significa lembrar Cesare Zavattini, que preconizava para o neorrealismo a observação premente do ser humano, de qualquer ser humano. Isso leva Olmi a focalizar até gestos aparentemente insignificantes, os quais, ao contrário do que apontaram alguns críticos, não são supérfluos, pois ajudam a construir as personagens em sua psicologia. Se, em O emprego, há algo de “supérfluo” é quando a câmera se demora na descrição do cotidiano dos colegas de escritório, pois a esqualidez com que é retratada a existência de Domenico é suficientemente paradigmática para que o filme se perca em digressões.

Embora, como os diretores neorrealistas, Olmi tenha optado por um estilo antiespetacular e por uma narração em tom menor de uma vida sem desejos, eivada de melancolia, em seu filme estamos diante de uma nova realidade social, a do neocapitalismo, a mesma angustiante realidade que leva ao suicídio o operário de O grito (Il grido, 1956-1957), de Antonioni, e à morte o lumpemproletário de Desajuste social. Essa falta de perspectivas de personagens populares no seio da sociedade capitalista é condenada pela crítica de esquerda que ataca os dois filmes: o de Antonioni, por atribuir a um representante da classe trabalhadora uma crise existencial burguesa; o de Pasolini, por apresentar uma condição social sem saída.

É a temática da alienação, que terá destaque no cinema italiano engajado dos anos 1960-1970, do qual os exemplos mais emblemáticos, nesse sentido, são A classe operária vai ao paraíso (La classe operaia va in paradiso, 1971), em que Elio Petri lança um olhar desencantado sobre as contradições de um proletariado dividido entre dois mitos, o da revolução e o do bem estar burguês, e Trevico-Turim: viagem no Fiat-Nã (Trevico-Torino… viaggio nel Fiat-Nam, 1973), no qual Ettore Scola documenta o violento choque que o pragmatismo do “capitalismo selvagem” representou para trabalhadores saídos de zonas rurais.

Luchino Visconti, de certa forma, já havia focalizado esse tema em Rocco e seus irmãos (Rocco e i suoi fratelli, 1960) e, dois anos depois de O emprego, é a vez de Mario Monicelli, num episódio de Boccaccio 70 (Boccaccio ’70, 1963), Renzo e Luciana, transposição de A aventura de um casal (L’avventura dei due sposi, 1958), de Italo Calvino, conto que, posteriormente, integrará o volume Os amores difíceis (Gli amori difficili, 1970). Monicelli, ao agregar-lhe alguns elementos do romance Os noivos (I promessi sposi, 1840-1842), de Alessandro Manzoni, confere às desventuras de um jovem casal, cuja intimidade é afetada pelos turnos de trabalho em horários diferentes, uma conotação social bem marcada: a de uma crítica irônica aos ritmos de trabalho ditados pela lógica industrial.

A Itália estava adentrando a era do boom econômico, mas nem todas as suas camadas sociais estavam preparadas para sofrer o impacto da desumanização imposta pelos modernos “servos do capital”. É isso, em última instância, que um diretor católico – e não de esquerda – como Olmi constata num filme que, tendo reduzido ao mínimo indispensável a ficccionalização do tema, em vários momentos se apresenta quase como um documentário.

* Mariarosaria Fabris é doutora em Artes, professora da USP e autora de O neo-realismo cinematográfico italiano: uma leitura (Edusp).

Mais Ermanno Olmi

Proletários de todo o mundo, por José Geraldo Couto – “Olmi constrói uma narrativa que combina observação social, sátira de costumes, romance de formação e história de amor.”

Esquecer para lembrar, por José Carlos Avellar – Olmi “procura esquecer tudo o que sabe para reaprender a ver o mundo a partir do gesto do dia a dia das pessoas comuns”.

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