Na estreia do Brasil no mundial só havia mulheres na sala do apartamento. O único homem chegou no fim do primeiro tempo, depois do gol. A transmissão recheada de clichês e bobagens de Galvão Bueno na Globo é diversão garantida quando se está de bom humor, porém se optou pela Fox Sports 2. Pela primeira vez, uma equipe inteiramente feminina conduzia uma partida da seleção masculina.
Uns dias antes, Isabelly Morais, uma moça de vinte anos, havia sido a primeira mulher brasileira a narrar um gol da Copa do Mundo, após a Rússia abrir o placar contra a Arábia Saudita. O vídeo viralizou nas redes sociais: “momento histórico”, “inexpressiva”, “agradável e sem afetações”, “se não ficarem falando sobre qual jogador é o mais bonito, já é um avanço”. A Rússia marcou aos 11, aproveitando um cruzamento pelo lado esquerdo. Isabelly não comentou, mas Yuri Gazinsky – o autor do gol – não é bonito nem feio, e tem as orelhas grandes demais.
Pé frio
Minhas amigas não podiam abrir a boca quando viam uma partida de futebol com os irmãos ou primos. Eles achavam que elas falavam besteira. Segundo a tradição da minha família – ou segundo meu avô, e depois meu pai e meu tio –, se a minha tia assiste ao jogo o Palmeiras perde. Meu avô sempre levou o futebol muito a sério. Você olhava para a boca dele durante os jogos e via que estava rezando; às vezes ele pegava o terço. Ficava nervoso quando minha tia dizia “Vai fazer gol agora! É agora!”.
Uma vez ela disse que o Palmeiras ganharia de 2 a 0 e o resultado foi exatamente o oposto: 2 a 0 para o adversário. Em outra ocasião, após ela arriscar um comentário (o time era ruim, os jogadores eram pernas de pau mesmo e por isso não venciam), meu avô se levantou, abriu a porta, e mandou minha tia deixasse o apartamento. Quando ela estava entrando no elevador ele voltou atrás e pediu que ficasse, mas em silêncio.
Meu avô não está mais aqui, mas até hoje a presença da minha tia é lamentada pelo meu pai e pelo meu tio quando ela chega na hora de uma partida. Chacotas familiares e pés-frios à parte, essa história reflete uma cena por muito tempo bastante comum no país do futebol: as mulheres longe dos gramados e das transmissões televisivas. Quando apareciam, era para atrapalhar.
Aqui se fala nisso o tempo todo. Eu, que sempre gostei de futebol, ainda que ultimamente me veja mais distante – o trauma da última Copa e a situação política atual têm minado minhas energias torcedoras –, me pergunto como uma parte tão grande da população podia viver alheia a ele, desatenta às conversas em elevadores, corredores e bares. Cada vez mais vejo alguma moça se enfiando em alguma delas. Vejo também os olhos masculinos, aos poucos, menos espantados se mulheres fazem algum comentário perspicaz sobre o jogo do fim de semana.
Corpo estranho
Na primeira transmissão feita por mulheres de um jogo do Brasil da Copa, se escutava também mais duas vozes de mulher: da goleira Bárbara, da seleção feminina, e da jornalista Vanessa Riche, responsável pelo projeto Narra Quem Sabe, processo seletivo que escolheu três narradoras para a Copa da Rússia na Fox Sports. Além de Isabelly Morais, foram escolhidas Manuela Avena e Renata Silveira.
Nas outras emissoras, a presença feminina também está particularmente forte nesta Copa. O número de repórteres e comentaristas vem aumentando, e elas já não são apenas elementos decorativos. Ana Thaís Matos, por exemplo, tem colecionado elogios públicos pelas análises táticas dos jogos que faz diariamente no programa Troca de Passes, do SportTV.
Mas ainda é um evento para homens, feito por homens. O número de mulheres na cobertura ainda é infinitamente menor, como notou Camila Mattoso, da Folha de S. Paulo, em foto publicada antes da partida entre Brasil e Sérvia:
Desafios: 1. Achar um lugar para sentar. 2. Achar mulheres na foto.
E é ainda preciso lidar com o assédio. Não são poucos os casos de torcedores tentando beijar ou bolinar repórteres em frente às câmeras. Júlia Guimarães e Amanda Kestelman, jornalistas da Globo, falaram sobre esse desconforto em um texto publicado no último dia 26:
É como se fôssemos um corpo estranho em salas de imprensa, de coletiva, zonas mistas.
Um corpo estranho como o de Regiani Ritter, uma das primeiras mulheres a desempenhar a função de repórter de campo. Nos anos 1980 não existia zona mista, e era preciso entrar no vestiário para entrevistar os jogadores. Um dia, enquanto entrevistava o técnico do São Paulo no Morumbi, Regiani entrou no vestiário a convite dele e os jogadores estavam nus. Quando a viram, correram cobrindo as partes íntimas. Casagrande foi o único a ficar. Não se cobriu e pediu que ela o esperasse tomar uma injeção. Então subiu num banco, virou de costas, tomou uma injeção nas nádegas e concedeu a entrevista.
Piruetas
Quando criança eu vivia com os joelhos ralados, passava horas jogando futebol numa quadra de cimento e só no fim do dia notava que meus pés estavam cheios de bolhas. Comprava shorts que tinham três vezes o meu tamanho e vinham com uma sunga interna, que era preciso cortar. Nessa época decidi torcer para o São Paulo, apesar da família palmeirense. Era a equipe que ganhava tudo na época, mas talvez tenha sido só por provocação. Passada a raiva inicial, meu avô até que lidou bem com a traição. Assistíamos juntos aos jogos do Palmeiras e ele se admirava por eu gostar e entender de futebol. Até me deu uma camisa do São Paulo, um ato extremo. Depois que ele morreu, como castigo divino, o São Paulo nunca mais ganhou nada.
Conversando com outras amigas da minha geração, que detestam futebol, não há como não tocar no assunto das aulas de Educação Física. Os meninos jogavam futebol na quadra, as meninas jogavam vôlei num pátio. Se havia uma rede, ou algo para dividir o espaço, melhor. Caso contrário, ficavam em círculo jogando “um, dois, três, corta”. Uma amiga conta que morria de medo daquela bola na altura da cabeça. Teria preferido jogar com a bola nos pés.
No meu colégio todo mundo jogava tudo, e aprendíamos os fundamentos de cada modalidade. Ainda assim, me lembro de quando decidimos reivindicar a quadra um dia por semana durante o intervalo entre as aulas. Essa possibilidade nunca tinha passado pela cabeça de ninguém. E jogávamos futebol. Depois houve até uma viagem aos Estados Unidos, onde participamos de campeonatos e perdemos quase todos os jogos de goleada (levando menos de sete gols, de qualquer modo). Nos Estados Unidos o futebol é “esporte de mulher”, e as meninas cobravam lateral dando piruetas.
Dona Ester
Se não fosse pela presença de uma voz mais fina, a narração feminina se pareceria muito com as narrações futebolísticas de sempre. O tom e o léxico utilizado são os mesmos: apita o árbitro, dá o comando, recomeça o jogo. Mas é uma narração bastante neutra. É preciso mostrar técnica e correção, e ainda não há muito espaço para excentricidades.
Elas se soltam mais à noite, no programa Comenta Quem Sabe, uma mesa redonda composta exclusivamente por mulheres. Após a eliminação da Alemanha as meninas até cantaram a paródia da canção italiana Bella Ciao entoada pela torcida brasileira para caçoar da seleção alemã.
Assim como não desejo que a literatura escrita por mulheres fique confinada a um gênero específico e ocupe uma estante diferente nas livrarias, gostaria de ver homens e mulheres participando da mesma transmissão e dos mesmos programas, em igual número, ocupando a mesma posição de destaque. Mas ainda estamos muito distantes disso. Durante a transmissão de Portugal e Uruguai, pelas oitavas de final, a comentarista da Fox Sports leu o comentário de um espectador:
Tô perdendo o bolão para a minha sogra, a Dona Ester, ela acerta todas.
Um abraço para a Dona Ester.