Você tem medo de quê?

Colunistas

22.04.15

Há algo na experiência contemporânea em relação à multiplicação de discursos – de ódio, de pânico moral, de violências – que é impossível compreender. Por um lado, por ser um fenômeno no qual estamos engajados, impedindo uma avaliação externa e desapaixonada. Redes sociais, aqui amplamente entendidas como fenômeno de interação entre pessoas num mundo altamente conectado, fazem parte deste grande acontecimento, a explosão dos discursos. A inflação de expressões individuais vem sendo sistematicamente explicada, analisada, vasculhada por novos discursos cuja pretensão é entender, dimensionar, dar conta do que a experiência de hiperconectividade significa na vida atual. O espetáculo O que você realmente está fazendo é esperar o acidente acontecer, da Cia de Teatro Acidental, em cartaz até 16 de maio na Oficina Cultural Oswald de Andrade (São Paulo), é uma excelente provocação sobre o que significam estas disputas de discurso. Performatiza, a partir da clássica tragédia O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues, um dos temas em pauta nas redes: homofobia, violência e discriminação sexual.

Atores na peça O que você realmente está fazendo é esperar o acidente acontecer (Divulgação)

Digo perfomatiza por que a montagem tem a força de não ser uma adaptação da obra rodriguiana – e nessa negativa reside sua principal estratégia teatral. Encenada pela primeira vez em 1961, O Beijo no asfalto tem a característica principal das tragédias: produzir um efeito catártico com seu final surpreendente. No primeiro ato, o beijo de dois homens é pretexto para um noticiário sensacionalista. No segundo ato, o beijo escandaloso afeta o homem que deu o beijo. Até aqui, a narrativa parece seguir um curso linear. Há um fato, a combinação entre este fato e a sua exploração na imprensa causam um impacto, e haverá um desfecho. O elemento catártico está justamente no desfecho que ultrapassa o desenrolar dos acontecimentos: quando o sogro, incitado a matar seu genro, por ele ter beijado outro homem, declara seu amor a ele. De forma simples, Nelson Rodrigues aponta a homofobia partindo justamente de onde partia também o desejo.

O que os atores de O que você realmente está fazendo é esperar o acidente acontecer trazem para a cena são os diferentes tipos de discursos sobre homofobia, que vão do vale do tudo do relativismo até o pânico moral do tipo bolsonariano, passando pelos clichês que todos os dias lemos nas redes. Ao não reencenarem a peça, mas discutirem em torno dos temas da peça, levam a plateia a repensar suas posições ideológicas e políticas sobre como o medo do homossexual organiza o sensacionalismo, as políticas moralistas, e ainda funciona como um potente argumento para a defesa de todo tipo de violência e conservadorismo.

Neste último item vale destacar duas questões relacionadas entre si e articuladas ao espetáculo: o Estatuto da Família, a maior expressão de homofobia expressa em lei, em tramitação no Congresso por iniciativa da bancada evangélica; e a violenta agressão, por parte do aparelho de Estado, da travesti Verônica Bolina. São duas formas de expressão de pânico moral institucionalizadas que, como mostram os atores da Cia de Teatro Acidental, fazem parte da proliferação dos discursos de ódio que têm o homossexual como alvo, centro, foco, porque é contra ele que se concentra a estratégia de produzir pânico moral a fim de, como contrapartida, oferecer regulação, controle, segurança. Vigiar e punir, como dizia Foucault, desde que todos nos tornemos vigias.

Esta tem sido, de fato, uma forma da política contemporânea muito bem sucedida: superestimar o inimigo para garantir mobilização, recursos e apoio no seu combate. Meu problema é perceber como esta forma política já invadiu as redes sociais de maneira violenta, nos fazendo crer que estamos de fato, conversando sobre violência e discriminação, sobre homofobia e misoginia, quando muitos de nós acaba se tornando apenas um mero repassador de conteúdos moralizantes, cujo objetivo é provocar medo e fundamentar violência. Nossos discursos de ódio não são sequer originais ou próprios, mas muitas vezes resultado de estratégias de dominação da vida social pelo medo. Nessa disputa, tem mais chance quem puder responder à pergunta título: você tem medo de quê?

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