Zonas escuras, atos inexplicáveis – quatro perguntas a Daniel Galera

Quatro perguntas

07.11.12

 

Daniel Galera (foto de Renato Parada)

Barba ensopada de sangue é o mais recente livro de Daniel Galera, autor nascido em São Paulo em 1979, e chega ao mercado brasileiro elogiado por autores internacionais como Ricardo Piglia e Gonçalo M. Tavares. O primeiro capítulo do romance foi publicado em Granta – os melhores jovens escritores brasileiros, publicação que listou Galera entre os principais nomes da nova ficção brasileira. A trama gira em torno de um professor de educação física incapaz de identificar rostos que, após a morte do pai, viaja a Garopaba (cidade em Santa Catarina onde o autor morou por alguns anos) e começa a investigar, aos poucos, o que teria acontecido com seu avô, cujo assassinato ocorreu em circunstâncias misteriosas. Barba ensopada de sangue também será publicado em outros países: em Frankfurt, ficou acertada a publicação do romance pelas seguintes editoras: Mondadori (Itália), Suhrkamp (Alemanha), Penguin Press (Estados Unidos), Random House Mondadori (Espanha) e Hamish Hamilton (Inglaterra). Daniel Galera respondeu a quatro perguntas do Blog do IMS acerca de seu último trabalho.

1) O protagonista de Barba ensopada de sangue sofre de um problema neurológico raro que o impede de identificar rostos. Disfunções incomuns no cérebro são uma tendência contemporânea na literatura (como sugere o texto O cérebro na ficção, de Vinícius Castro). A neurociência moderna é um assunto de seu interesse?

Sim. Adoro ler sobre neurociência e fiquei sabendo a respeito da prosopagnosia, ou dificuldade para reconhecer rostos, num livro do Antonio Damásio chamado O mistério da consciência. Quando comecei a bolar a história e o protagonista do meu romance, decidi que esse problema neurológico específico poderia enriquecer o personagem. Por um lado, a deficiência acrescenta uma camada de complexidade às suas tendências solitárias e introspectivas. Ele é um sujeito acostumado desde cedo a lidar com o problema de esquecer o rosto de todo mundo, inclusive as pessoas mais íntimas, o que faz ele se aproximar de todos com uma certa cautela. Por outro lado, essa incapacidade gera uma certa tensão permanente de que ele não reconhecerá alguém que ama, ou alguém que o ameaça. Mais importante que isso, porém, é o papel da deficiência em sua relação com a figura do avô. Se no início da história o protagonista fica fascinado com a figura do avô desaparecido, isso se dá em parte porque o avô era muito parecido com ele. Sua própria aparência fugidia está ali, na foto do Gaudério. Ele guarda a foto do avô e, ao mesmo tempo em que investiga o que aconteceu com ele em Garopaba, começa a se transformar nele fisicamente, deixando a barba crescer. O avô se torna uma âncora não apenas de sua própria identidade familiar, mas da imagem de seu rosto. E assim o problema neurológico permeia toda a narrativa. De todo modo, tentei pegar leve no tratamento desse tema, porque é verdade que as disfunções e síndromes neurológicas têm se tornado tendência na literatura contemporânea, como mostra bem o artigo do Vinícius que vocês publicaram aqui. A revista americana n+1 também tratou do tema num artigo que fala dos “neuronovels”. O risco, a meu ver, é que os autores abusem das explicações oferecidas pelo paradigma neurocientífico (que é arriscado na mesma medida em que é poderoso) da mesma maneira que se abusou do paradigma da psicanálise para justificar psicologicamente cada mísera atitude dos personagens fictícios (às vezes isso me incomoda em bons romances como A trama do casamento [de Jeffrey Eugenides] ou Liberdade [de Jonathan Franzen], por exemplo, livros em que a construção psicológica dos personagens é um pouco perfeita DEMAIS, o que os torna menos humanos e mais o que se poderia chamar de “criaturas literárias arquitetadas por escritores hábeis”). Personagens precisam de ambiguidades, zonas escuras, uma certa dose de atos inexplicáveis ou contraditórios, enfim, de humanidade. Ao descrever o amor de um personagem como uma determinada reação fisiológica e neuroquímica, aniquilamos, na maioria dos casos, o drama. A neurociência é bem-vinda na medida em que intensifica os conflitos e emoções do personagem.

2) Bonobo e Laila são personagens com nomes que já apareceram em outras obras suas (Bonobo está em Mãos de cavalo e Laila no conto “Laila”, incluído na Geração Zero Zero). Ao repetir os nomes, você pretende sinalizar uma ligação com estes outros personagens de suas obras?

Bom, o Bonobo de Barba ensopada de sangue é o Bonobo de Mãos de cavalo. Mesmo personagem. Apenas fiz de conta que ele não morreu e imaginei que tinha ido parar em Garopaba. Eu gostava dele e queria usar de novo. Foi ótimo imaginar tudo que teria acontecido com ele entre o adolescente encrenqueiro da Esplanada e o budista dono de pousada na praia. É uma das coisas legais da ficção. Queria que ele vivesse, então decidi que estava vivo e pronto. É simples assim. E a Laila é apenas mencionada muito rapidamente, mas sim, claro que é a Laila do conto. Alguns personagens ficam vivos na minha cabeça depois dos livros, então reutilizá-los, mesmo que apenas numa citação, é uma forma de reconhecer essa continuidade. Um cara que costuma fazer coisa parecida é o David Mitchell. A Madame Crommelynck do Cloud Atlas reaparece em Menino de lugar nenhum. Aprovo.

3) Ainda que você tenha criado uma “voz própria” narrativa, parece haver ecos de dois autores na prosa de Barba ensopada de sangue: Cormac McCarthy nos diálogos e Juan José Saer na descrição das paisagens. Você enxerga esta relação – para não dizer “influência”?

Enxergo uma relação mais direta no caso do Cormac McCarthy, porque seu romance “A travessia” inspirou alguns aspectos da trama e da linguagem de Barba ensopada de sangue. Não vou entrar em minúcias, mas a maneira como Boyd, o irmão do protagonista Billy, se torna inadvertidamente uma espécie de figura mítica na fronteira mexicana me fez pensar em como as lendas e mitos ainda podem florescer em comunidades pequenas, mesmo em tempos de Google e Twitter. E nunca pensei no Saer como influência direta, mas sim, faz sentido. Acho as descrições de paisagens em seu romance As nuvens muito bonitas e impactantes. Todo escritor deve procurar uma voz própria, mas seria ingenuidade não reconhecer que nossa voz literária não somente transpira uma visão de mundo particular, mas também é feita do que lemos. Eu me deixo influenciar numa boa.

4) Por que a escolha de um narrador em terceira pessoa que está, de certo modo, colado ao protagonista? Você acha que esse distanciamento cria uma frieza narrativa maior?

Essa pergunta é difícil de responder. Por um lado, a voz desse personagem apareceu desde o começo em minha imaginação como uma voz em terceira pessoa narrando no tempo presente. Quer dizer, no começo foi espontâneo. Depois me perguntei se esse seria realmente o narrador ideal para este romance, e concluí que sim. Eu queria que toda a ação, ou quase toda, fosse filtrada pela percepção do protagonista. O romance se limita ao que ele vê, sente, pensa e experimenta, com poucas exceções (notas de rodapé, eventuais narradores-câmera se distanciando da ação, algumas digressões breves). Ao mesmo tempo, eu não queria me limitar à linguagem do protagonista, que é um cara de bagagem intelectual muito simples, que com frequência não encontra palavras para expressar suas ideias e sentimentos. Então prevaleceu esse narrador em terceira que usa uma linguagem mais sofisticada que a do personagem para ver o mundo do ponto de vista quase exclusivo do personagem. Era isso que eu queria. Acho que era isso.

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