Dois mini livros da biblioteca de Drummond

Por dentro do acervo

08.08.12

Entre os quase quatro mil livros da biblioteca de Drummond, sob a guarda do Instituto Moreira Salles, se escondem pequenas edições, as chamadas edições diamante, que em geral medem em torno de 11 centímetros por 8. Uma delas encerra a coletânea de contos A casa do gato cinzento, de 1922, obra com que o escritor e poeta santista Ribeiro Couto, nascido em 1898, estreou na prosa.

Couto não ficaria conhecido por esse livrinho e sim pelo romance Cabocla, de 1931, muitíssimo bem recebido pela crítica da época. Mas o autor, que era diplomata e viveria a maior parte da vida fora do Brasil, permaneceu esquecido até mesmo quando esse romance foi adaptado para novela de televisão por Benedito Ruy Barbosa e encantou muita gente ligada na Rede Globo, no horário das seis, em 1979. Há poucos anos, foi feita nova versão. O nome de Ribeiro Couto, pequenininho, passava tão rápido nos créditos que ele continuou obscuro até a década de 1990, quando voltou a ser falado e, poucos anos depois, reeditado.

Parte de A casa do gato cinzento foi escrita na pensão de uma senhora portuguesa, dona Sara, na então Rua do Curvelo, 43, hoje Rua Dias de Barros, no bairro carioca de Santa Teresa. Na mesma pensão almoçava diariamente Manuel Bandeira, morador do número 51 da mesma rua. Ali o poeta de Pasárgada e o amigo se fartaram de peixadas, galinhas de cabidela e bifes de ceboladas que a boa portuguesa preparava para os hóspedes. Fora do horário do almoço, Bandeira, que morou na ruazinha simples  entre 1920 e 1933, se deliciava com a vista que tinha dos fundos de sua casa: a placidez da baía de Guanabara, que se apresentava “como uma mesa posta”, escreveria ele a Ribeiro Couto.

Foi nessa época que Couto mostrou a Bandeira os originais de A casa do gato cinzento. Bandeira foi franco. Não gostou dos contos e não escolheu meias palavras para dar sua opinião. Usou o termo que os ingleses adocicam quando substituem o original por “oh, sugar!” Franqueza de amigo verdadeiro, da qual Couto não abriria mão ao longo de toda a vida, que se encerrou em Paris, em 1963, quando,  embaixador recém-aposentado, retornava ao Brasil.

Ainda que Ribeiro Couto não abrisse mão da opinião de Manuel Bandeira, fez-lhe ouvidos moucos a respeito do gato cinzento: o livrinho foi lançado por Monteiro Lobato em 1922, na edição diamante que consta da biblioteca de Drummond, exemplar que o poeta de A rosa do povo dedicou à sua mulher, Dolores.

A casa do gato cinzento recebe o nome do conto de abertura, que, por sua vez, foi inspirado na pensão de dona Sara. Ali, explica o autor, havia um “gato cinzento, distraído e pacífico, a tomar sol à janela”. Impressa na página de rosto, lê-se a dedicatória: “A Manuel Bandeira, meu amigo”.

Ribeiro Couto não terá se arrependido da teimosia. Confiou no seu talento e,  quando reuniu outros contos em Baianinha e outras mulheres, de 1927, contou mais uma vez com a leitura prévia de Bandeira que, dessa vez, não só adorou os contos como saiu em defesa do autor para rebater a crítica que Mário de Andrade fizera ao livro no Diário Nacional. Em carta ao autor de Macunaíma de 21 de janeiro de 1928, escreveu Bandeira: “Sinto agudamente a obra de arte em todos os contos, se entendo bem o que é obra de arte, isto é, trabalho de composição visando a comoção artística. […] Melhor do que isso não vi nunca nem nas páginas de infância de Guerra e paz“.

Fiquemos por aqui, para não nos desviarmos do assunto. Mas tenho de dizer que, a despeito da defesa de Bandeira, o autor de Baianinha e o de Macunaíma nunca mais se entenderam.

Quanto a Andorinhas, outro mini livro da biblioteca de Drummond, foi surpresa.  Eu só conhecia do autor, Godofredo Rangel, o delicioso Vida ociosa: romance da vida mineira, obra-prima de caráter memorialista publicada em 1920 em edição da Revista do Brasil, de Monteiro Lobato & Cia – Editores.  Voltei a esse livro agora, ao meu exemplar, cuja edição é de 2000. E me encantei de novo com as descrições que faz o narrador, juiz que visita várias comarcas de Minas. Se eu lesse esse livro hoje pela primeira vez, certamente repetiria os sublinhados que fiz quando o li, há alguns anos.

Dessa vez, fujo um pouco do assunto mesmo, que devia ser Andorinhas, para lembrar um trecho de Vida ociosa: “Nossa capacidade afetiva é tão grande, que às vezes se estende a cousas mínimas”. Passa ele, então, a contar o episódio de uma formiga que o visitava todas as noites, enquanto ele escrevia. A formiga “surgia de um ângulo da mesa, atravessava-a em diagonal, passando sobre o papel, e quebrava além outra aresta, sumindo-se até o dia imediato”.

Esse namoro delicado durou até o dia em que a formiga não veio mais: “Fiquei imprestável, tive que depor a pena”, conclui o narrador.

Histórias como essa o juiz contava às pessoas que visitava, e inclui, na sua narrativa autobiográfica, as que ouvia também da gente simples do interior.

Tanto A casa do gato cinzento como Andorinhas integram a coleção Biblioteca da Rainha MAB, editada por Monteiro Labato & Cia. Os volumes são revestidos de Castillian Cover, material que substituía o couro, e estampam, na capa, a imagem de uma fada, com um livro na mão, em desenho de J. Prado. As edições dessa época foram minuciosamente estudadas por Yone Soares de Lima em A ilustração na produção literáriaSão Paulodécada de vinte.

* Elvia Bezerra é coordenadora de Literatura do Instituto Moreira Salles.

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