Em agosto de 1985, poucos meses depois da estreia de Shoah em Paris, Roberto Pontual, então correspondente do Jornal do Brasil na França, apresentava o filme de Claude Lanzmann como
um quebra-cabeças montado aos poucos, com suspense e precisão, na tentativa de iluminar ao máximo um acontecimento que a humanidade não tem o direito de esquecer” e explicava: para não reduzir o filme “a um ato inócuo de rememoração, Lanzmann teve que repudiar a visão puramente cronológica dos fatos – visão que se compraz em armar a explicação do extermínio como uma sequência lógica e fechada de etapa a etapa, desde a erupção do anti-semitismo alemão no século XIX até a aplicação da morte em massa (a solução final) nas câmaras de gás de Auschwitz e Treblinka.
Shoah – prossegue Pontual em A revisão do holocausto, talvez o primeiro relato mais amplo do filme na imprensa brasileira, (Caderno B do Jornal do Brasil, 22 de agosto de 1985) – procura
ressuscitar o passado como presente, restituindo-o numa atualidade intemporal onde a violência de ontem vira violência de hoje: ‘O pior dos crimes, ao mesmo tempo de ordem moral e artística, quando se quer consagrar uma obra ao Holocausto, é considerá-lo como passado. Meu filme é uma anti-lenda, um contra-mito, vale dizer, uma investigação sobre o presente do Holocausto ou, ao menos, sobre um passado cujas cicatrizes estão ainda tão fresca e vivamente inscritas nos lugares e nas consciências que ele se dá a ver numa alucinante intemporalidade’, diz Lanzmann.
O texto observa ainda que “os homens e as mulheres que falam diante da câmera dão sempre a impressão de não estarem contando lembranças, mas de as viverem mesmo, com força e clareza, no presente”. O filme, diz, se passa no tempo presente:
A locomotiva a vapor que agora se dirige a Treblinka, filmada há pouco por Lanzmann, é exatamente a mesma TT-2 que, no inverno de 1942, trouxera para o campo e a morte os vagões abarrotados de judeus vindos de Bialystok ou de Varsóvia. O apito, a estação, os trilhos são os mesmos de então. Lugares e feridas permanecem.
Pouco depois, em dezembro de 1985, no Brasil para a primeira exibição do filme, Lanzmann sublinha (em entrevista ao Jornal do Brasil) essa
relação estranha entre o lugar e as palavras. É como se elas dessem vida aos lugares. Existe a paisagem, a beleza da natureza, que lembra o silêncio de Deus. E de repente surge a palavra, ritmada. A palavra dá vida aos lugares, e os lugares adquirem pela palavra uma força insuspeitada. É um filme que se mexe, que avança todo o tempo, como uma viagem de trem. E as cicatrizes do extermínio eclodem com uma atemporalidade alucinante. Toda fronteira entre o passado e o presente é abolida.
Dois anos mais tarde, no lançamento comercial de Shoah no Rio de Janeiro, uma breve nota de Ely Azeredo (O Globo, 15 de outubro de 1987) destaca o uso da paisagem como uma cicatriz da violência:
A ideia é representar o holocausto com paisagens vazias ou com imagens do cotidiano vivido na época das filmagens, paralelamente à enorme carga de entrevistas.
Igualmente numa breve nota na estreia do filme em Porto Alegre (Jornal do Comércio, 20 de setembro de 1989) Hélio Nascimento reafirma:
Os locais estão como impregnados pelos massacres ali cometidos. E nesse sentido, um dos momentos mais impressionantes é aquele em que o trem entra em Treblinka com a câmera colocada logo atrás do maquinista. O espectador está como que voltando ao passado, refazendo o trajeto do trem da morte.
Shoah foi exibido pela primeira vez no Brasil no encerramento do Segundo FestRio, no domingo 1o de dezembro de 1985, em sessão contínua, iniciada às duas da tarde e terminada depois da meia noite.
“Passar o filme inteiro de uma vez não é uma exigência. É uma necessidade”, disse então o diretor.
Na minha opinião, ele é muito curto. Tem a duração necessária. Ele apreende a sua própria memória. Sua construção é sinfônica, circular. Temas que se anunciam docemente, desaparecem, depois retornam.
Lanzmann propõe uma segunda imagem-resumo do filme, “uma prospecção de petróleo. Se cava. É um filme arqueológico, que fala da ausência de traços, do nada. Tudo foi disperso”. Tudo ocorreu “como se uma floresta fosse destruída. Sem deixar vestígios”.
Nesse mesmo domingo da primeira exibição de Shoah, dois depoimentos do diretor: um para Susana Schild, (O triunfo moral da esperança), no Jornal do Brasil, outro para Helena Salem (Uma radiografia do holocausto), em O Globo.
Na entrevista para o Jornal do Brasil, ele conta que antes de começar a filmar, “durante um ano, em um memorial em Israel”, leu todos os documentos da burocracia nazista.
Constatei a dimensão da minha ignorância. Pensei que sabia tudo sobre a guerra, por ter vivido na França, lutado na Resistência. Mas percebi que não sabia nada. Depois, durante três anos, fiz pesquisas exploratórias, fui a muitos lugares em todo o mundo, mas com alguns intervalos.
Diz ainda que as filmagens foram rápidas, “divididas em fases. A primeira, em 1976, outra em 1978, depois em 1979. Ao todo, dois anos de filmagens”. A decisão de não usar material de arquivo veio logo no início:
As pessoas confundem campo de concentração com campo de extermínio. Os campos de extermínio existiram apenas na Polônia, a partir de 1941, e foram construídos exclusivamente para matar os judeus em câmaras de gás. As pessoas chegavam, duas horas depois estavam mortas, reduzidas a poeira. Desses campos – Treblinka, Sobibor, Belzec, Chelmno, Auschwitz (este, também campo de concentração) -, não há praticamente vestígios. De Sobibor, Belzec, Chelmno, não havia uma foto; de Treblinka, apenas uma. Nenhuma das câmaras de gás. Por todas essas razões, se impôs rapidamente a decisão de realizar o filme inteiramente no presente, hoje.
Nas pouco mais de nove horas de projeção, “cinco horas e meia de silêncio. De cinema. Não é uma reconstituição, não é uma ficção, não é um documentário. O filme é uma ressurreição, uma reencarnação, tem uma arquitetura, uma construção em torno de uma obsessão pessoal. Eu fazia sempre as mesmas perguntas, geralmente referentes à primeira vez. E não tinha nenhuma intenção de acusar, denunciar, culpar. Nada disso, isso não me interessava”. Shoah, conclui, “é um filme desesperado. Sem final feliz.”
“Foi uma obsessão mesmo, uma grande urgência interior”, volta a dizer no depoimento para Helena Salem:
Importante não é saber como comecei, mas saber porque continuei, apesar de todas as dificuldades. Fiz o filme como alguém alucinado. Enquanto fazia o filme, a distância entre o presente e o passado foi totalmente abolida. Em Treblinka só havia pedras, filmei as pedras como um louco, por todos os lados. Quando o espectador vê as pedras de Treblinka, ele vê os judeus sendo mortos. Da mesma maneira que quando o trem chega a Treblinka o espectador vê a tabuleta com o nome do campo exatamente como os judeus que iam para morte deviam ver. É um ato de cinema muito violento. Por isso o filme é fundamentalmente uma invenção, não uma lembrança. Por exemplo, o condutor de Treblinka está agora com sua foto em todos os lugares e sua foto tornou-se mais forte do que a imagem de arquivo de Auschwitz. O filme é sobretudo uma ressurreição, as pessoas entrevistadas revivem aquele tempo de tal maneira que, quando falam, até alternam os tempos dos verbos – presente e passado.
Não se trata de um filme “feito de lembranças, que são como um queijo suíço, cheio de buracos”, diz na entrevista a Susana Schild:
No filme, quando as pessoas falam, confundem presente e passado. Na mesma fala, dizem: eu estava lá e pouco depois: eu estou lá.
Muitas vezes ele insistiu para que as pessoas falassem:
Não foi uma crueldade fazê-las reviver, através da fala, tudo o que sofreram, no caso dos judeus. Era absolutamente necessário. Não acho que tenha sido sádico, mas fraternal. Durante as entrevistas, eu toco suas mãos, seus ombros, seus braços. Uma forma de dizer ?eu estou com você’. Não faço interrogatórios para que alguém se diga culpado. Eles sofrem. Mas eu também sofro. Eu não os torturei. Eles se sentiram liberados. Eu não estava falando com uma pessoa qualquer, mas com um grupo muito especial de sobreviventes – e não há mais do que um punhado deles no mundo.
Para a exibição em cinemas comerciais, a Federação Israelita do Rio de Janeiro editou, em 1987, um catálogo com trechos de depoimentos do diretor a jornais e revistas de Paris e de Nova York. Entre eles um fragmento da entrevista a Edgard Reichman para L’Arche, maio de 1985:
Eu não tive a intenção de fazer um documentário. Menos ainda a de acrescentar mais um depoimento a tudo que já foi dito, escrito ou filmado sobre Shoah. Simplesmente, ir até o fundo do abismo e levar o público comigo. Atualmente, esta obra me transcende. Ela é, numa certa medida, opaca para meus olhos. Sinto-me como um alpinista que acabou de chegar ao pico de uma inatingível montanha. Não, eu não quis fazer um filme de recordações, mas sim uma ressurreição.
E um fragmento da entrevista a Richard Bernstein para The New York Times em outubro de 1985:
Não há comentários. Não há vozes ocultas que explicam ao público o que ele deve pensar. E quanto à sua duração, é um filme que cria a sua própria memória, no seu decorrer. Fornece as bases da comprovação. Por exemplo, você tem uma cena com poloneses em um povoado; 40 minutos depois, você tem um polonês que me leva a visitar o povoado em um carro e mostra a casa dizendo que ela pertenceu a um judeu. Três horas depois, há um outro povoado e você vê não apenas as casas dos judeus, mas os poloneses que vivem nas casas dos judeus. Está tudo no tema de anti-semitismo, mas a cada vez, ele é tomado a outro nível. Eu queria mostrar o aspecto absoluto da tragédia judaica. Eu queria mostrar como os judeus eram levados e como eles estavam sós e abandonados pelo mundo. Esta é a tragédia.
Ao lançamento comercial no Rio, em outubro de 1987, seguiu-se a exibição em São Paulo e, em 20 de janeiro de 1988, a Folha de S. Paulo dedicava duas páginas do caderno Ilustrada ao filme (Shoah, o filme, o fato) em que Paulo César Souza anota:
Shoah, o filme, não é uma simples sucessão de entrevistas sobre o genocídio judeu. Através da franqueza de suas perguntas, e de uma sutil orquestração de falas, rostos e lugares, seu diretor obtém um curioso efeito de aproximação entre presente e passado, protagonista e espectador. Um filme falado como jamais houve, dizendo – ou dando a entender – coisas que jamais foram ditas numa tela. Tratando do destino de um povo que mais que nenhum outro venerou a Palavra – o “povo do Livro” – é justo que esse filme utilizasse a palavra como meio, e que obedecesse à proibição sagrada de representar por imagem.
O texto, como os muito outros escritos sobre Shoah, parecem confirmar as breves frases usadas por Simone de Beauvoir para se referir ao filme:
Não é fácil falar de Shoah. Há magia nesse filme, e a magia não pode ser explicada.