Contra o sonso-coxismo

Correspondência

22.10.12

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Querida Vilma,

que demais essa sua história de libertar o riso nas salas de aula de Berkeley! Lembrei daquele caso da estudante de uma universidade de Ohio (Utah? Kansas? este repórter nunca foi muito bom em apuração) que processou um colega por estupro. Tudo porque, na hora do vamo-ver, depois de perguntar antes e com tal zelo e sempre e tanto “baby, posso te beijar?”, “baby, posso abrir seu zíper?”, “baby, posso tirar seu sutiã?” etc. etc. (a pouparei dos detalhes sórdidos), ele se esqueceu de inquirir “baby, posso introduzir meu leão de jade na sua gruta nacarada do prazer?”, ou seja lá qual venha a ser o jargão utilizado pelos jovens do meio-Oeste em seus intercursos de terceiro grau. A cartilha politicamente correta de tal universidade propunha que todos os passos da paixão fossem oralizados, de modo a não deixar dúvida sobre o que seria feito por ambas as partes; o donjuan se esqueceu e se deu mal. O sonho da correção política cria monstros.

Curioso é que mesmo em Berkeley essa camisa de força também vista o comportamento dos estudantes, logo aí, essa universidade que foi berço dos protestos contra a guerra do Vietnã e catalisou os principais embates políticos nos anos 60 nos EUA. Será que o sonso-coxismo já chegou à Califórnia, Vilma? (Chamo de sonso-coxismo certo conservadorismo de raiz fascista porém índole cordial e embalagem mauricinha muito comum aqui em São Paulo. Aquele povo fanático por ordem, segurança e vias expressas lisinhas pro seu SUV deslizar, saca? Coxinha em SP é o termo que designa quem se veste ou se porta empanadinho e certinho como o famoso salgadinho – inventado, dizem, pela cozinheira da Princesa Isabel, cujo filho era doido por coxa de galinha. “Coxinha” também é usado para designar os PMs, que, além de adorarem comer coxinha de graça nos botecos das áreas onde rondam, acabam ficando com a bunda grande de tanto comer salgadinhos – sem falar que o uniforme os torna também, hum, empanados. Ah, que beleza como as palavras vão se tornando outras coisas conforme o uso, não? Mais pra frente podemos falar no maravilhoso termo “diferenciado”).

Considerações político-culinárias à parte, o sonso-coxismo de SP tem encontrado bolsões de resistência. Como, por exemplo, os vários coletivos culturais que, neste exato momento em que escrevo esta carta, conduzem milhares de pessoas vestidas de cor-de-rosa à Praça Roosevelt, onde, neste domingo, se realiza (se realizou) o evento #ExisteAMORemSP, com vários shows gratuitos e esquema totalmente colaborativo, sem nenhum patrocínio. Uma espécie de anarquia organizada, como nunca aconteceu antes na história de nossa cidade sonso-coxinha. Vi a criação desse evento na Casa Fora do Eixo, uma rede de coletivos de produtores de cultura de todo o país, no domingo anterior às eleições municipais, quando Celso Russomanno liderava todas as pesquisas e tinha chances reais de abiscoitar (ainda se usa abiscoitar?) a prefeitura de SP. Daí surgiu o evento #AmorSimRussomannoNão, que levou, debaixo de chuva, três mil pessoas vestidas de rosa à Praça Roosevelt. O uso do rosa-choque foi adotado para não envergar o evento nem sob o azul de José Serra nem sob o vermelho de Fernando Haddad – mas principalmente para chamar a atenção sobrepondo-se ao cinza da cidade para falar de cultura. Cinza aliás bem presente nessa praça de cimento armado que se tornou a Roosevelt após a reforma. Não entendo nada de economia, mas me parece inusitado uma praça custar R$ 55 milhões e não dispor de coretos, rampas suficientes para cadeirantes e carrinhos de bebê, bebedouros, árvores, esculturas etc etc… não há nem mesmo um abrigo para quem queira fugir de uma chuva súbita. Quem amou a praça de perfeito cimento lisinho foram os skatistas – os quais já estão sendo alvo dos sonso-coxinhas que moram na Roosevelt por causa do “barulho”: querem tirar os garotos da praça e colocá-los comportadinhos num cercado; skate, só entre as 12h e as 18h. Lembrei dos seus esquilos em Berkeley…

Mas sabe que eu tenho certa inveja desse mundo perfeito da Califórnia, onde tudo funciona e o riso aparece com hora marcada? É que eu fui, né, Vilma, ser freelance na vida, e uma hora estou terminando uma reportagem sobre a estética do frio no sul do Brasil, na outra finalizo um conto sobre o amor nas redes sociais, aí faço uma pensata-playground sobre viver três dias no aeroporto do Galeão, depois edito uma matéria sobre espiritismo, em seguida sou ghost writer de um empresário, na sequência emendo resenhas sobre livros e eventos culturais os mais desencontrados, aí preciso redigir as orelhas de um livro do Drummond e anotar ideias pros meus poemas. Meio desnorteante sim, mas ainda não apelei ao Dramin. Acho que todo frila, insatisfeito por natureza, tem certa nostalgia árcade de uma vida regrada. Ser frila é viver feito bolinha de fliperama, chutado e ricocheteado de lá pra cá sem nunca saber qual vai ser o próximo movimento, uma luz acesa ou o buraco do game over. Aí que um dia desses eu cismei de largar todos os frilas só pra ficar lendo o livro novo do Daniel Galera, Barba ensopada de sangue. Conhece a literatura dele? Que romance impressionante. Tenho certeza de que vai papar todos os prêmios o ano que vem. Mas falemos do livro depois…

É que, por falar em prêmio, o grande bafafá literário da semana se deu em torno do misterioso Jurado C. Olha que piada: Jurado C é o pseudônimo de um jurado do prêmio Jabuti que deu uma de tartaruga ninja e bagunçou o coreto das notas, atribuindo zeros e uns pra alguns livros e notas altas a outros – o que acabou por suspeitamente manipular o resultado final do prêmio, conforme conta em detalhes a brava repórter Raquel Cozer aqui. Depois do Sobrenatural de Almeida, ainda não tinha surgido na literatura nacional um fantasma tão polêmico. Dizem que logo mais a Câmara Brasileira do Livro, que organiza o Jabuti, vai tirar o Gasparzinho do armário para o exorcismo dos furibundos escritores que não gostaram do resultado final. Te atualizo sobre o novo furdúncio.

Outra presepada da semana (não, juro que não vou falar no fim da novela das 9) foi um mendigo de Curitiba cuja foto foi parar no Facebook e se tornou imediatamente famoso – bonito demais pra ser homeless, ganhou convites de casamento de milhares de damas carentes e caridosas. Lembrei do mendigo que rondava seu prédio, não era um que vivia te perguntando se ele era bonito? Bem, chega, falei demais pra variar, dona Vilma. Last but not least, como anda a nossa peça de teatro? Você tinha falado de umas ideias envolvendo um casal, Tennessee Williams e o estar-sem-estar das redes sociais. Te mando abaixo um conto baseado nesse estar-sem-estar, me diz se dá pra transformar isso em drama?

Beijo,

Ronaldo

P.S.: O #ExisteAMORemSP foi incrível: apesar do sonso-coxismo, dez mil pessoas ocuparam a praça por pura diversão, sem organização de poder público nem privado, e principalmente, sem stress.

P.S.2: Acabei de ouvir uma explicação pro termo ‘coxinha’ totalmente diferente… Os playboys, quando iam para a praia, já estavam com as coxas bronzeadas porque frequentavam clubes e usavam shorts, e só playboy frequenta clube.

Que maravilha poder te alcançar

por Ronaldo Bressane

Que maravilha poder te alcançar via skype, estava com saudade das nossas conversas, outro dia vi uma cena que precisava te contar. Tinha ido jantar sozinha naquele bistrô que a gente costumava ir, e como sempre fico de olho nas outras mesas, imaginando como são as vidas das outras pessoas, no que trabalham, se são felizes, se assistem Chaves ou Seinfeld, se andam de SUV ou de bicicleta, se escolhem Mac ou Android, se fazem sexo loucamente ou se já são parte daquele condomínio de gente que só finge que faz mas no fundo no fundo tem nojinho. Aí de repente me peguei sacando esse casal que tinha acabado de chegar: muito elegantes os dois, o cara numa jaqueta de couro marrom de motoqueiro, a garota um tubinho preto e umas meias cor de fúcsia (fúcsia, adoro essa palavra) e o cabelo preso no alto da cabeça, os dois muito bonitos, magros, lógico, com aquela cara de quem já assistiu todos os filmes em cartaz na cidade. Cada um falava com alguém no celular, muito animados. Até que veio o garçom e meio que eles tiveram de desligar, parece que não gostaram disso, o garçom os forçava a ter de sair das bolhas, ou então fosse somente uma impressão minha, fato é que eles acabaram pedindo o que o garçom lhes sugeriu, meio que para dispensá-lo, e pouco depois chegou uma garrafa de vinho. Quando o garçom se afastou e eles se preparavam para o brinde, o cara tirou de dentro da jaqueta uma caixinha de veludo preto e estendeu em direção da moça, aí me peguei emocionada, porque, lógico, só poderia ser… A garota se deslumbrou: uma aliança de ouro branco, bem grossa, com uma linha sinuosa em ouro velho no interior do anel, e a moça botou o anel no dedo e ficou olhando pra ele de ângulos variados, estendeu a mão, levantou e deu um beijão no cara, agora sim eles pareciam felizes. A moça teve uma ideia: clicar o anel? Claro que sim, e daí ela fotografou, e ficou lá mexendo no celular um tempo, escrevendo umas coisas, e o cara também clicou ela clicando o anel, e ela fotografou ele e ele fotografou ela, e se registraram juntos com o anel em primeiro plano e quase que eu fotografei eles da minha mesa de tão lindos que estavam. Ficaram um tempo encafifados nos celulares até que chegou a comida. Mas aí os celulares de cada um dos dois começou a tocar sem parar. Eram pessoas que, imagino, devem ter visto as fotos deles na internet, em alguma rede social, e ligavam para dar parabéns, e aí eles começaram a comer enquanto recebiam os parabéns, obrigado, obrigado, era só o que eu via seus lábios se mexerem, comiam e agradeciam, também tive vontade de agradecer por ver aquela cena, porque eu estava sacando alguma coisa misteriosa sobre a vida e o amor e a nossa época, você está me entendendo, ei, você está me ouvindo, será que dá pra parar de mexer só um pouquinho nesse treco enquanto eu falo?

* A fotografia que ilustra o post foi tirada por Ronaldo Bressane no evento ocorrido na Praça Roosevelt.

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