Há artistas que criam uma obra confessional, plasmando diretamente em literatura, cinema, pintura ou música sua experiência pessoal. E há artistas que partem dessa experiência, mas a deslocam e transfiguram de modo a transcender o narcisismo e criar uma fabulação de maior alcance, generosa, crítica, universal. O Fellini de Os boas vidas, Roma e Amarcord é o melhor exemplo que me ocorre. E alguns filmes de Nanni Moretti vão mais ou menos nessa linha: Caro diário, Aprile e agora este esplêndido Mia madre.
Trata-se, resumidamente, do drama de uma diretora de cinema (Margherita Buy) às voltas com a complicada realização de um filme ao mesmo tempo em que sua mãe (Giulia Lazzarini) agoniza num hospital. Sabemos que o próprio Nanni Moretti viveu situação semelhante: sua mãe morreu quando ele filmava Habemus Papam (2011).
Aqui começa o deslocamento: o próprio Moretti encarna o irmão da protagonista, um engenheiro. Acrescentando um dado ao jogo entre biografia e ficção, a personagem da cineasta tem o mesmo nome da atriz que a representa, Margherita, e seu irmão se chama Giovanni, como Moretti.
Jogo de refrações
Mencionei Fellini lá no alto, mas não há nada mais distante da exuberância plástica e musical felliniana que o estilo discreto, contido, de Nanni Moretti. Em Mia madre, o principal do drama chega a nós como que amortecido, em surdina. Um exemplo eloquente é o da cena em que se anuncia uma morte: vemos uma pessoa que ouve alguém receber por telefone, fora do quadro, a informação, que apenas deduzimos por um jogo de refrações (visuais, auditivas, lógicas). Ou seja, o espectador participa ativamente da construção do drama, o que de maneira alguma diminui a pungência deste.
O que há de mais estridente são os percalços do filme dentro do filme, em especial os conflitos entre a diretora Margherita e o impagável ator norte-americano Barry Huggins (John Turturro), contratado para encarnar um industrial que fecha sua fábrica, ocasionando demissões em massa. Não deixa de ser interessante, aliás, o modo oblíquo e irônico como Moretti aborda questões cruciais da Europa hoje: o desemprego, a “austeridade”, os conflitos sociais.
No mais, o que acompanhamos é uma admirável orquestração de transições. Há a transição óbvia, espacial, entre ambientes: o hospital, o set de filmagem. Mas há também a passagem do real à fantasia (os sonhos e devaneios culpados de Margherita, encenados como sequências cinematográficas), a travessia sutil do drama ao humor.
Humor e drama
A cineasta Margherita insiste com seus atores que eles não devem imergir totalmente em seus personagens, mas manter-se “ao lado” deles. Ninguém, nem sequer ela própria, entende muito bem o que isso significa, mas essa talvez seja a chave de tudo o que vemos na tela: a força de Moretti vem desse estar ao mesmo tempo dentro e fora do drama, vivendo-o e simultaneamente enxergando-o criticamente.
A presença do cômico no dramático, e do dramático no cômico, é um dos encantos do cinema de autores tão díspares como Chaplin e Renoir, Ozu e Almodóvar, Monicelli e Coutinho, além, claro, do citado Fellini. Nanni Moretti faz parte da heterogênea confraria. Em Mia madre encontrou a atriz que condensa perfeitamente essa alquimia. Como uma Giulietta Masina rediviva, Margherita Buy sorri como quem está prestes a chorar, e vice-versa. Na paisagem cambiante desse rosto há toda uma declaração sobre a vida e sobre a arte de representá-la.