A ópera sombria da miséria

No cinema

08.02.13

Os miseráveis, de Tom Hooper, não é propriamente um musical, pelo menos não no sentido do gênero hollywoodiano que consagrou diretores como Busby Berkley e dançarinos como Fred Astaire e Gene Kelly. No musical clássico havia uma ruptura das convenções narrativas realistas para que os personagens repentinamente desandassem a cantar e dançar, instaurando uma atmosfera de sonho em que tudo parecia possível. Era uma fantasia escapista, solar, enquanto Os miseráveis é uma ópera sombria.

http://www.youtube.com/watch?v=9LRPeJEYAZk

Nesse sentido, um cotejamento mais pertinente seria com adaptações operísticas como o Don Giovanni (1979) de Joseph Losey ou a Carmen (1984) de Francesco Rosi. Uma diferença importante é que os dois filmes citados foram rodados em locações reais (o primeiro em Veneza e em Vicenza, o segundo na cidade andaluza de Ronda, fazendo as vezes de Sevilha). Ou seja, havia um lastro realista e prosaico a contrabalançar o páthos elevado da ópera encenada.

Em Os miseráveis, ao contrário, a cenografia estilizada, os ambientes criados ou modificados digitalmente, condizem com a manutenção de um tom sempre elevado, paroxístico, desde as primeiras imagens. Uma narrativa feita apenas de clímaces, sem respiros, pontos mortos ou digressões. É por isso, mais do que pelas desgraças em série do romance de Victor Hugo, que se trata de um filme pesado, pois um clímax tende a anular o outro, produzindo paradoxalmente a monotonia e o fastio. O único alívio é propiciado pelas entradas em cena do casal de vigaristas Thénardier (Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter).

No mais, tudo é saturação: a música que não para um minuto, os sentimentos sempre exacerbados, a direção de arte grandiosa e enfática. Não há espaço para o cotidiano e acidental, muito menos para o silêncio e a reflexão. O próprio dia a dia dos miseráveis é carregado de uma intensidade de pesadelo: são todos sujos, andrajosos e doentes.~

De Hugo a Boublil e Schönberg

Todas essas opções estavam dadas desde o momento em que Hooper decidiu adaptar, não o romance de Hugo, mas a versão teatral musical de Alain Boublil e Claude-Michel Schönberg, encenada pela primeira vez em 1980. É isso o que diferencia o novo filme das inúmeras outras adaptações que o cinema realizou de Os miseráveis desde 1913.

Uma certa ousadia foi a escalação dos dois atores principais, Hugh Jackman como o desditado Jean Valjean e Russell Crowe como o implacável inspetor Javert. Ambos ficaram marcados por papéis em filmes de ação e é curioso vê-los em outro contexto. Penso que se saem bem do desafio.

É difícil localizar qual é o “problema” de Os miseráveis. Para qualquer lado que se olhe, tudo parece excelente, ou no mínimo adequado: a música, a direção de arte, a fotografia, as atuações. Da história nem é preciso falar. A questão é que o conjunto parece sucumbir ao seu próprio peso, na falta de uma direção e de uma energia especificamente cinematográficas. O cinema não é apenas a soma de suas partes, mas alguma coisa a mais que faz o todo fluir numa determinada direção. Essa coisa é o engenho e a arte do diretor. E é isso, a meu ver, que falta em Os miseráveis, o que o habilita a ganhar todos os prêmios técnicos que disputa, mas não o de melhor filme.

Seria interessante, mas não cabe nos limites deste texto, discutir a circunstância de esse filme sobre a opressão e o espírito da revolta estar surgindo agora, quando a Europa e os EUA se veem confrontados com graves problemas, como o desemprego, a miséria e as tensões sociais. É curioso que o Os miseráveis termine (quem não quiser saber o final, pare de ler por aqui) com uma cena de euforia revolucionária, com o detalhe de que se trata de uma alegórica revolução dos mortos, a única que os poderes estabelecidos podem aceitar.

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