Começou a maratona da 36ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. E começou bem. Veja aqui a programação completa.
O filme que abriu o evento ontem (18 de outubro), o chileno No, de Pablo Larraín, centrado no plebiscito que determinou o fim da ditadura Pinochet, apresenta uma abordagem surpreendentemente ágil e leve para um tema tão grave. Mas quero falar de cinema, de grande cinema, e é isso, nada menos, o que nos oferece A bela que dorme, de Marco Bellocchio.
Em torno do controvertido caso da jovem italiana Eluana Englaro (1970-2009), que passou 17 anos em coma antes de ter desligados os aparelhos que a alimentavam e hidratavam, Bellocchio construiu uma obra-prima sobre a compaixão.
http://www.youtube.com/watch?v=hSFlB4V7uns
A ação se concentra nas horas que precederam a morte da moça, durante as quais a Itália se viu imersa em grande comoção e numa crise política profunda, pois o primeiro-ministro Berlusconi tentou impor um decreto anulando a decisão da suprema corte de apelações, que autorizou o pai de Eluana a desligar os aparelhos.
Várias histórias fictícias correm em paralelo a esse evento real: a de uma atriz (Isabelle Huppert) que abandonou os palcos desde que sua filha entrou em estado vegetativo; a de um senador (Toni Servillo) que desligou os aparelhos que mantinham viva sua própria mulher, e que agora tem de votar sobre o assunto no Parlamento; a de um médico (Pier Giorgio Bellocchio, filho do diretor) que se empenha para salvar do suicídio uma bela junkie (Maya Sansa) etc.
O que unifica esses episódios diversos é, por um lado, o noticiário onipresente sobre a tragédia de Eluana; por outro, o tema comum do arbítrio sobre a vida ou a morte de um ser humano. Bellocchio multiplica em seu filme as “belas adormecidas” que podem ou não seguir vivendo, de acordo com a decisão dos que as cercam.
Documento e ficção
Incisivo e corajoso, mas longe da fúria militante de seus primeiros trabalhos (como De punhos cerrados, em que um filho rebelde mata a própria mãe), Bellocchio parece sobrepor às discussões políticas e religiosas o sentimento supremo da identificação com a dor alheia. Sim, os políticos são oportunistas, o Vaticano é hipócrita, mas não é isso o que mais importa, e sim a verdade afetiva (e moral) de cada um. É um filme doloroso como poucos.
Momentos de uma densidade ímpar pontuam essa narrativa plural, que mescla o documento e a ficção. A silhueta do senador recorta-se escura e solitária contra a imagem do Parlamento em convulsão, projetada numa tela. A atriz retirada deixa o filho junto ao leito da filha em coma, recomendando ao rapaz: “Fale com ela, opere o milagre; diga ?a palavra'”, o que remete ao clássico Ordet – A palavra, de Dreyer. A mesma atriz, durante um sono agitado, na poltrona ao lado da filha, recita as falas culpadas de Lady Macbeth. Políticos na banheira fumegante de mármore de termas antigas revivem o Senado da Roma imperial. O passado e o presente, a arte e a vida, o fugaz mundo midiático e o humanismo perene, Shakespeare e a Bíblia, tudo se entrelaça com uma desenvoltura notável, num ritmo ao mesmo tempo compassivo e eletrizante, pelas mãos de um cineasta que atingiu a plena maturidade artística e ética.
Outros grandes filmes vêm por aí, mas este é, desde já, um dos destaques da mostra.