O aberto, o fechado e o enfermeiro de Cannes

Cinema

22.05.15

Cannes. Dois filmes feitos para a janela de projeção hoje raramente utilizada, 1:33, o retângulo mais próximo do quadrado, especialmente se comparado aos formatos panorâmicos das atuais telas de cinema, televisão e computadores: um chinês, O assassino (Nie Yinniang), de Hou Hsiao-Hsien, outro húngaro, O filho de Saul (Saul fia), de László Nemes. As diferenças, na textura da fotografia, na estrutura de composição, aproximam um filme do outro de modo a que as características particulares de cada um ilumine o outro. No filme chinês, planos abertos, grande profundidade de foco, uma ampla gama de cores e uma imagem bem definida dos personagens num cenário de florestas e montanhas. Nenhum primeiro plano no filme de Hsiao-Hsien: “Filmo sempre à distância. Prefiro planos-sequência que mostrem a paisagem por trás dos personagens. Vamos mais longe com um plano-sequência, registramos a cena, pessoas, objetos e o espaço de uma só vez. Não gosto de efeitos de montagem que cortam o movimento natural das coisas”. No filme húngaro, planos fechados nos rostos do personagens, nenhuma profundidade de foco e um colorido feito quase só de uma luz esverdeada e cinza de interiores e de uns poucos exteriores à noite. “Estabelecemos um dogma antes de começarmos a filmar, eu, o fotógrafo e o cenógrafo: não vamos fazer um filme bonito, não vamos fazer um filme sedutor, não vamos fazer um filme de horror. Vamos colar a câmera no rosto de Saul, não ir além de sua capacidade de ver, ouvir e entender o inferno em que se encontra”.

Cena de O assassino

O olhar passeia à vontade pela paisagem aberta de O assassino e se perde no labirinto escuro de O filho de Saul. Estamos à vontade no espaço do filme Hsiao-Hsien, mas desorientados frente à história que ele nos conta, um episódio do século IX: Nie Yinniang, depois de anos de exílio retorna para assassinar o governador da província de Weibo – drama enigmático a olhos ocidentais sem maiores informações sobre a dinastia dos imperadores Tang (618-907) ou sobre os breves relatos da literatura “chuanqi” em que o filme se baseia.

Estamos desconfortáveis no espaço do filme de Nemes, um labirinto escuro em quase nada se vê além do muito próximo – um muito próximo com frequência coberto de sombras. Mas seguimos sem qualquer dificuldade a história que ele nos conta, um episódio num campo de extermínio da Segunda Guerra Mundial: Saul Ausländer, um “sonderkommando” encarregado pelos nazistas de preparar os prisioneiros desembarcados do trem para a câmara de gás e em seguida de arrastar os corpos para o crematório, imagina ter encontrado entre as vítimas seu filho e procura um rabino entre os prisioneiros para garantir um enterro digno para ele. Em comum nestas duas diferentes histórias e modos de contar uma história a preocupação de mergulhar o espectador no mundo imediatamente visível na tela, cortar todo o possível distanciamento, saltar para dentro da imagem. E, bem entendido, para o prazer cinematográfico não faz falta maior conhecimento da história da China nem maior definição e profundidade de foco na história no campo de extermínio.

Cena de O filho de Saul

Talvez uma pequena referência a um terceiro filme, Chronic, do mexicano Michel Franco, pode contribuir para figurar na imaginação como Hsiao-Hsien e Nemes construíram O assassino e O filho de Saul. No trabalho de Franco nenhuma dificuldade em se situar no espaço ou na história, a de um enfermeiro que cuida de pacientes terminais. A câmera está dentro de um carro na cena inicial e diante de um acidente de automóvel na cena final. Entre um carro e outro, uma meticulosa descrição do dia a dia do enfermeiro. Sua absoluta dedicação aos doentes, e o muito sofrimento dos que vão morrer pouco depois aparece aqui narrada com um certo quê do princípio do filme húngaro (colar no rosto do personagem) e do filme chinês (manter uma certa distância). O espectador não é convidado a sofrer com a condição dos doentes, mas a se perguntar de onde vêm a dedicação do enfermeiro e seu jeito um pouco fechado em si mesmo (ou visualmente, dentro de seu carro) e o silêncio amargo nas poucas conversas com a filha e a ex-mulher sobre a morte do filho. Ou seja, nestes três filmes temos um resumo de uns tantos mecanismos desenvolvidos para estimular o espectador a trabalhar com o filme, no instante mesmo da projeção, acrescentando ao quadro o que a imagem intencionalmente deixa fora de vista porque, de fato, uma imagem estimula sempre a invenção de uma outra que a complemente.

Algo assim ocorre no curta-metragem Command Action, de João Paulo Miranda Maria, produção independente, breve passeio por uma feira livre no subúrbio de uma cidade grande. Entre as barracas de legumes e peixes, entre os comentários de feirantes e fregueses, entre a rápida passagem pela barraca que vende galinhas e uma outra que oferece pasteis e caldo de cana, um menino conta as moedas e as notas amassadas no bolso da bermuda de olho na barraca de brinquedos. Com o dinheiro guardado quer comprar, na barraca de brinquedos, o robô Command Action. No breve passeio na feira, nas mercadorias e nas conversas entreouvidas, um convite a imaginar a cidade em volta da feira. Command Action, exibido na Semana da Crítica, é um dos dois únicos filmes brasileiros que fazem parte de um dos programas oficiais de Cannes. O outro é Quintal, de André Novais Oliveira, realizador que participa pela segunda vez da Quinzena dos realizadores – há dois anos a Quinzena selecionou Pouco mais de um mês.

Num festival, os filmes se cruzam, pois a programação intensiva convida a ver dois, três ou mais filmes num mesmo dia. Neste Cannes, que está terminado, além desse dialogo natural entre os filmes programados, um outro: uma sessão especial reuniu um conjunto dos primeiros filmes da história do cinema, Lumière! 120 anos do cinematógrafo Lumière recentemente organizado pelo Instituto Lumière de Lyon, no mesmo dia em que um seminário no mercado do filme discutia os novos espaços de difusão do audiovisual na internet, nos computadores, por meio da compra de uma sessão para se ver em casa. No meio da festa, uma sensação de que a festa (pelo menos a do mercado tal como ele operou até agora) acabou. E ao mesmo tempo em se discutia uma espécie de impasse vivido pelos grandes festivais frente à tendência da grande mídia internacional em dar maior atenção à festa em torno dos filmes – a cerimônia de entrada para as sessões de gala, a presença de personalidades, o vestido de tal ou tal atriz ou modelo – que aos filmes propriamente ditos. Talvez, a imprensa, tanto quanto o cinema, se sinta pressionada pela internet e reduza toda a comunicação ao limite e ligeireza de uma comunicação incapaz de atender à proposta do que melhor se apresentou no festival, como os filmes de Hou Hsiao-Hsien, László Nemes e Michel Franco, como À sombra das mulheres de Philippe Garrel, A lei do mercado de Stéphane Brizé, Doce de feijão de Naomi Kawase, Minha irmã mais nova de Kore-eda Hirokazu,  Cemitério do esplendor de Apichatpong Weerasethakul,  e o melhor de todos, Mountains may depart de Jia Zhangke.

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