O lugar do artista em “Birdman” e “Grandes olhos”

No cinema

30.01.15

O craque Tostão, em suas colunas sobre futebol, costuma distinguir os jogadores que parecem melhores do que efetivamente são daqueles que são melhores do que parecem ser. Lembrei dessa distinção ao ver, em sessões seguidas, Grandes olhos, de Tim Burton, e Birdman, de Alejandro Iñárritu. Digo logo que, a meu ver, Tim Burton está no segundo caso, e Iñárritu no primeiro. Sei que muitos discordarão, e terão como argumento a penca de indicações de Birdman ao Oscar. Ossos do ofício.

Mas vamos aos filmes. À primeira vista, nada parece mais distante do universo de Burton do que o argumento de Grandes olhos: o drama da disputa entre a pintora Margaret Keane (Amy Adams) e seu marido Walter Keane (Christoph Waltz) pelo reconhecimento da autoria de quadros de crianças de olhos grandes e tristes, muito populares nos anos 1950 e 60. Aí é que está a sagacidade do cineasta: em Grandes olhos, é como se ele apresentasse dois filmes em um.

No plano mais óbvio, ele entrega o que o público de hoje quer: um melodrama que começa com a frase “baseado em fatos reais” e termina com os indefectíveis letreiros informando que “Fulano perdeu o emprego e sofreu um colapso” e “Sicrana casou, mudou de vida e mora até hoje em…”


Juízo crítico e simpatia

Sob essa superfície banal – ou melhor, sobre ela, como uma película pintada, ou o relevo de um holograma – desenrola-se todo um outro filme, que examina de vários ângulos o estatuto da arte não só na “era da reprodutibilidade técnica” estudada por Benjamin, mas também na era do espetáculo midiático e do culto às celebridades. Dizendo assim, soa enganosamente pomposo. Nada mais distante da leveza de Tim Burton do que a gravidade intelectual.

Em Grandes olhos, quem faz a fama e a fortuna do casal Keane é um jornalista de celebridades (Danny Huston) e quem as destrói parcialmente é um crítico de arte da velha guarda (Terence Stamp). Impossível não pensar na tensão entre esses dois polos do juízo crítico quando encaramos, por exemplo, a obra de um Romero Britto ou de um Paulo Coelho.

Amy Adams e Christoph Waltz em cena de Grandes olhos

É evidente que Tim Burton sabe do valor estético limitado (para dizer o mínimo) dos quadros de Keane, que lembram aquelas estampas kitsch vendidas em feiras hippies. Mas o filme não cai no sarcasmo fácil diante delas. Pelo contrário, há uma simpatia pela sinceridade da entrega artística de Margaret que lembra duas coisas: o filme que o próprio Burton dedicou a Ed Wood (“o pior cineasta do mundo”) e o conto de Henry James Greville Fane, sobre uma escritora medíocre de best-sellers românticos. Tanto Burton como James, ao tratar dessas artistas populares e “menores”, matizam e problematizam o juízo estético, fazem pensar no que é que legitima uma obra de arte aos olhos do mundo.


Intersecção com arte pop

No caso de Grandes olhos, Burton busca o ponto de intersecção entre a produção em série das pinturas de Keane e a arte pop florescente no período, que questionava a “aura” da obra e inseria a produção artística no coração da sociedade de consumo. Não por acaso, o filme começa com uma frase de Andy Warhol e tem um de seus pontos altos na cena em que, no supermercado, Margaret passa por uma prateleira de latas de sopa Campbell’s, imortalizadas por Warhol, e em seguida vê suas próprias obras expostas em gôndolas e todas as pessoas em volta com os olhos exorbitantes de suas pinturas.

Desde as primeiras imagens – uma cidadezinha plana, límpida e idílica como a de Edward mãos de tesoura – Burton nos insere num mundo na fronteira entre o real e a fantasia. O tratamento pictórico das cores e da luz faz com que nos sintamos quase como no interior de tableaux vivants, especialmente nas cenas na casa nova do casal Keane, que parece saída de quadros de David Hockney, artista britânico ativo e influente no período.

Ou seja, nada a ver com o naturalismo rasteiro dos dramas hollywoodianos ditos “adultos”. Grandes olhos, em sua própria textura, revela-se como obra de imaginação e fantasia, perpassada pela ironia, mas também pelo prazer da forma, pelo gozo da criação estética. Se há uma “verdade” a ser revelada por esse jogo, o filme não a entrega de bandeja; deixa que o espectador a descubra por si. É provável – e saudável – que cada um descubra a sua.


Birdman
e a estética da hipérbole

Birdman, coincidentemente, também discute o lugar do artista na sociedade atual, mas de uma perspectiva bem diferente. Aqui, trata-se de um ator veterano, Riggan Thomas (Michael Keaton), que tenta montar na Broadway uma peça séria, baseada em conto de Raymond Carver, e afastar-se da imagem de astro superficial de Hollywood, construída vinte anos antes, quando ele foi o super-herói Birdman, o homem-pássaro.

Há aqui uma evidente piada interna, já que Michael Keaton encarnou o Batman de 1989 (curiosamente dirigido por… Tim Burton). É uma das poucas sutilezas de Birdman, pois o estilo de Iñárritu está mais para a hipérbole, a ênfase e a redundância.

Nos embates de Riggan com o ator de sua peça (Edward Norton), com a filha junkie em reabilitação (Emma Stone), com uma ferina crítica teatral (Lindsay Duncan) e com seu próprio alter ego (o Birdman), tudo se explicita aos gritos de modo a não deixar dúvidas ou ambiguidades. Não são diálogos, são confrontos de discursos.


Labirinto interno

Não que Iñárritu dê pouca importância à imagem e à construção cinematográfica. Há até um certo virtuosismo nos longos planos-sequências em steadycam pelos corredores do teatro ou pelas ruas de Nova York, mas de algum modo esses prodígios técnicos não se justificam em termos estéticos, não se integram organicamente ao que se narra e se discute no texto. Mas posso estar enganado. Os meandros do teatro percorridos pela câmera talvez correspondam ao labirinto interno do personagem, ao cipoal de sua mente em frangalhos.


Michael Keaton e Edward Norton em cena de Birdman

Assim como em seu longa-metragem anterior, Biutiful, a mão do cineasta pesa mesmo é na explicitação unívoca do discurso, que deixa ao espectador pouco espaço para pensar e construir sua própria leitura. Acrescenta-se aqui um realismo mágico um tanto gasto (explicado, obviamente, como projeção da fantasia do protagonista). Ao que parece, é isso mesmo o que a maioria espera. O filme é um sucesso e deve ganhar uma porção de Oscars.

, , , , ,