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Meu bom Joaquim,
Com o cão sem plumas ainda a lamber a ressaca, aqui da margem esquerda do Capibaribe, sigo o conselho do Paulinho da Viola, esse professor de educação sentimental e bons modos: fecho a ferida, estanco o sangue e sepulto bem longe o que restou da camisa colorida que cobria a minha dor, demorô, já era, evoé, meu camarada, se Baco é por nós, quem será da turma do contra?! Agora sigo firme e convicto como o boneco gigante do Homem da Meia-Noite pisando em chão de estrelas.
Para um xodó no Recife, caro Joaquim, entreguei o meu coração vira-lata. Uma jambo-girl que paralisou o Galo da Madrugada. Das dezessete variações de morenas que cataloguei em estudo no agreste com meu amigo Duncan Lindsay, a minha jambo-girl atingia o grau máximo, dez, nota dez. Palmas. Sobre as outras variações, depois tiramos a limpo em um chope com o cego de Ipanema, no botequim da vossa preferência. Só sei que tem a morena caldo de feijão mulatinho, a caldo de feijão vermelho, a urucum-roots, a fogo-pagô etc etc.
Uma calcinha azul, como a que lembraste, meu prezado, cai bem na morenidade. E como! Aliás, meu xodó não entendeu nada, quando, sonâmbulo, em um casarão de Olinda, saí a repetir, como um velho tarado de Aldeia Campista: “Ah, a calcinha azul; ah, a calcinha azul, a calcinha azul, a calcinha azul…” Meu inconsciente fez bobagem, ô meu bom cronista, em plena madruga da terça gorda, no que ela sorriu, nada perguntou, serviu suco de pitanga e me devolveu ao mais profundo Morpheu com dengos e cafunés.
Me belisca, madame Realidade, me belisca que é muito jambo, sombra e água fresca para o quintal do meu humilde puxadinho.
E hoje, Joaquim, nem precisei cantarolar “Disritmia”, meu samba de todas as cinzas, ela já veio curar o nego com água de coco, chamego e tapioca ao queijo de qualho. Bamba na arte de virar uma tapioca. Só de calcinha. Ah, de ressaca, meu prezado, todo coração vagabundo batuca uma elegia ao casamento. Não fiz diferente. No balanço da rede, disse à moça de Olinda que queria todo dia sempre igual.
No fundo daquela xícara misteriosa que a vovó dela ganhou da baronesa do Beberibe, li o nosso futuro, que não sou besta. Coisas que aprendi no “Guia da leitura no sedimento do café – arte milenar árabe de interpretar sua vida”, livro presenteado por um sebista carioca chapa do amigo Alvaro Costa e Silva, El Mariscal, meu guia histórico e sentimental dos botequins e tílburis da cidade do Rio de Janeiro.
Diz que me ama, borra, diz que me ama borra! Dizia para mim mesmo e sorria imbecilmente do trocadilho idem. De cara vi a imagem de uma cebola no fundo da xícara da porra da baronesa. Isso é ruim, meu prezado Joaquim, quer dizer que a nega esconde algo, como um marido, por exemplo. Um marido de casal moderno que cada um brinca o Carnaval para um lado. Isso é péssimo, amigo, vamos ler com mais atenção, espera um pouco.
Como vês, me apaixono como uma donzela de romance capa e espada, os reis de França, aquelas ondas. Pera, pera ai, agora estou lendo direito a borra. “Não é nada disso que você está pensando”, ela diz e se aproxima. Me puxa para a rede na varanda. Os coqueiros farfalham. Amo esse verbo quase barulho – acho que roubei isso do cineasta Lírio Ferreira, o grão-fundador do “Me beija…”, o bloco de Quarta-feira de Cinzas.
Me puxa para a rede, amigo, e os corpos se entendem na rede, coisa que não é nada fácil, brother. A rede, ao contrário da cama, não é nada metafísica. A rede é ou não é. A rede não é para amadores. A rede é um balanço para lá do Kama Sutra e dos amores transatlânticos. A rede é mais até do que o côncavo e o convexo no desenho lógico do rei Roberto. A rede é Niemeyer rabiscando o sexo dos anjos ao som de Thelonious Monk ao fundo.
Sim, Joaquim, além de virar uma tapioca como nunca dantes, meu prezado, a jambo-girl domina a arte de fazer amor, digo, sexo, digo, amor, na rede. O farfalhar dos coqueiros é tão bom para fazer amor, digo, sexo, quanto uma música açucarada da Sade Adu ou uma chanson de motel do Serge Gainsbourg. Batuta! Recomendo.
Bem que me aconselhaste, meu bom, a tomar este carnaval como remate de todos os males, amém, sou todo agradecimento.
Se há um emplastro para dor de amor, a jambo-girl agora é minha ideia fixa dependurada no trapézio do cocuruto. Melhor: a borra no fundo da xícara que a cada minuto me diz uma coisa diferente. Diz que me ama, porra. Só uma invenção de amor cura um amor verdadeiro. Só um xodó no Recife/Olinda me seria tão lindamente ilusório quanto o boi voador do conde holandês.
Não, prezado rapaz, ainda não estou apaixonado, quem dera, estou, como sempre, é amando. A mando de uma diabinha carnavalesca que deixou meu coração como as batidas de bumbo dos maracatus retardados, que voltam para casa cansados, com seus estandartes pro ar. Evoé, Antônio Maria, como escrever ao amigo Joaquim sem dar uma palhinha das tuas evocações e clarins?
Aqui me despeço, coração envelhecido em barris de bagaceiras e esperanças, ainda tentando decifrar o fundo daquela xícara, ainda fazendo do jambo da moça a bendita maçã do paraíso de Momo.
O afeto não se encerra, já com a saudade de todos os adeusinhos das gares portuguesas, me despeço,
Teu amigo Francisco