Não deve ser por acaso que os filmes mais recentes de vários cineastas importantes de nosso tempo têm como protagonistas magnatas sem escrúpulos do mercado financeiro: Cosmópolis, de Cronenberg, O capital, de Costa-Gavras, e agora O lobo de Wall Street, de Martin Scorsese – sem contar o personagem de Alec Baldwin em Blue Jasmine, de Woody Allen. Cada um à sua maneira, eles tentam dar um rosto a esse mal impalpável e difuso chamado capital financeiro global.
A “maneira” de Scorsese em O lobo de Wall Street é a mesma que caracteriza seu melhor cinema, marcado por histórias de ascensão meteórica, queda vertiginosa e redenção possível de personagens que, por um motivo ou por outro, “saíram da casinha” e embarcaram numa espiral de autodestruição. Não é isso, afinal, o que aproxima personagens tão díspares quanto os anti-heróis de Taxi driver, Touro indomável, O rei da comédia, Os bons companheiros, Cassino e até, de modo mais oblíquo, A idade da inocência e A última tentação de Cristo?
http://www.youtube.com/watch?v=PoSCUsNQVtw
Pouco importa que o Jordan Belfort vivido por Leonardo DiCaprio seja baseado na “história real” de um corretor da Bolsa de Nova York. No filme, ele é o homo scorsesiens por excelência, encarnação da “húbris” (excesso ou descomedimento), desejo humano de ir além das limitações impostas pela natureza e/ou pela divindade. Que lugar mais indicado para exercer essa ambição desmedida de poder e riqueza do que a bolsa de valores da maior economia do mundo?
Na selva do mercado
Como em outros de seus bons filmes, Scorsese divide dramaticamente essa trajetória em três atos: a euforia, a ressaca e a convalescença ou renascimento, marcado pela autoironia e pelo reconhecimento das limitações.
Aqui, desde as primeiras imagens – o comercial da empresa de Belfort, em que um leão passeia pelo escritório de uma corretora -, é evidente o retrato do mercado financeiro como uma selva, mas há também a associação entre a acumulação capitalista, o vício em drogas (álcool, cocaína, anfetaminas), a violência e a pornografia. A certa altura, tudo se condensa numa imagem inesquecível: Belfort colocando cocaína no vale da bunda de uma prostituta. Não será por falta de ênfase que Scorsese será criticado.
Brutalidade e humor
Isso tudo se dá numa narrativa vigorosa, com aquela montagem brutal de Thelma Schoonmaker, aquela trilha sonora nervosa (pop, rock, blues, jazz) típica de Scorsese e com um humor mais insolente do que de hábito na obra do diretor. A sequência da bad trip de Belfort com Quaalude de validade vencida é digna de uma antologia da comédia.
Um procedimento formal recorrente é o travelling em que o protagonista avança em direção à plateia, dizendo diretamente a ela o que, numa narrativa realista clássica, seria dito em off. Isso acentua a sensação de euforia e poder associada ao personagem.
Como sempre, depois da orgia vem o revertério, que não é o caso de descrever aqui, mas que coloca por terra a tola acusação de que Scorsese glamorizou a figura de Belfort. A cena em que, alucinado, ele tenta fugir com a filha pequena e bate o carro dentro da própria casa ecoa uma passagem parecida de Os bons companheiros, em que o personagem de Ray Liotta bate na mulher diante do olhar assustado da filhinha do casal. A moral cristã do diretor marca presença aqui como ali.
Interpretações biográficas são sempre perigosas, mas é impossível deixar de ver, neste e em outros filmes, duas circunstâncias centrais da experiência de vida de Scorsese: sua formação católica e o vício em cocaína que o levou a uma grave crise nos anos 70. O lobo de Wall Street não é o “reflexo” disso, mas é um retrato de nosso tempo por um grande artista que passou por isso.