Passei o fim de semana na praia, em êxtase, lendo as ficções de Bataille. Os personagens dos romances de Bataille (se é que esses personagens podem ser chamados personagens e se é que esses romances podem ser chamados romances) transam de todos os jeitos, experimentam todo tipo de prazer, sempre com mais intensidade e mais inventividade, sem restrições, até o limite de seus “corpos excessivos”, como escreve Denis Hollier no prefácio à edição dos “Romances e Relatos”, publicada em 2004 na coleção da Pléiade. Meu êxtase, entretanto, deve menos ao extraordinário aspecto “pornográfico” dessas ficções do que ao que elas representam para a literatura hoje, quando a prática literária parece ter chegado ao apogeu da domesticação narcisista e profissional.
Bataille é um antídoto às duas coisas. A literatura para ele não é obra de tentativas estéticas mais ou menos bem-sucedidas, mais ou menos bem-acabadas, mais ou menos merecedoras e carentes da admiração do leitor e da crítica. A literatura para ele é parte da vida e suas consequências não devem se limitar à leitura ou se submeter ao gosto do leitor, a uma suposta qualidade do texto ou à consequente consagração do autor. A literatura é ação e, como tal, deve afetar e modificar aqueles que entram em contato com ela, muitas vezes em contradição (ou em confronto direto) com o gosto do leitor.
Bataille não exalta a beleza do texto (na verdade, ele combate abertamente o poético e o literário), porque o texto que ele busca (um texto considerado por muitos literariamente pobre) não é fim, mas alusão possível a outro texto tão radical quanto impossível de ser escrito. A literatura paradoxal que ele exerce, uma literatura que se faz sinônimo de erotismo (mas de um erotismo que se confunde com o místico e com a morte), é meio e não fim; ela é instrumento de uma modificação da consciência e, portanto, também uma (outra) maneira de pensar (Bataille recorria à ficção quando o texto ensaístico atingia seu limite).
A diferença entre Bataille e os surrealistas vem da sua recusa a se deixar circunscrever ao âmbito “literário” do romance, do imaginário e do sonho. Sob influência de Sade, a associação entre erotismo e morte (a correspondência entre a impessoalidade da orgia e o anonimato da morte, por exemplo) pôs Bataille em rota de colisão com os surrealistas. Sua literatura está impregnada de uma visão demasiado radical da antropologia e da experiência mística para poder comportar sem problemas a ideia de autor. Seu erotismo tem a ver com Deus e com a morte de Deus. O desejo dos personagens, a impulsividade sexual que os guia e que a muitos pode parecer animalesca, é precisamente o que os torna tão humanos, sem que para isso eles precisem ser psicológicos, sem que precisem obedecer às regras de uma verossimilhança realista, sem que precisem fazer a narrativa romanesca “funcionar”, sem que precisem parecer “de carne e osso”. É o sexo “excessivo” que lhes dá não só humanidade, mas põe seus corpos no lugar de Deus e os diviniza.
O organizador da edição da Pléiade, Jean-François Louette, escreve na introdução que “o texto erótico é um sacrifício, no sentido etimológico do termo: ele produz o sagrado”. Bataille conhecia bem o ensaio de Marcel Mauss sobre o sacrifício e sabia que, no sacrifício, “é sempre o deus quem é executado através da vítima”. Para Bataille, a literatura é a “herdeira essencial” do sacrifício religioso, a começar pela tragédia e pela queda do herói.
Foucault definiu a transgressão em Bataille como “profanação num mundo que já não atribui sentido positivo ao sagrado”. O erotismo de Bataille não é apenas transgressão, mas meio de acesso a um sagrado transbordante, excessivo, informado por Sade, por Nietzsche e pela antropologia, para além do sagrado cristão, que ele profana. Bataille quer fazer a literatura ocupar o lugar do mito num mundo sem mitologia.
Num artigo publicado em 1933-34 com o título “A estrutura psicológica do fascismo”, ele enumera três “formas imperativas” de autoridade fascista: a religiosa, a real (do rei) e a militar. Em sua ficção, ele avança contra as três, mas é com a religiosa que ele bate de frente. Hoje, tudo indica que a autoridade religiosa tomou a dianteira, com a disseminação dos fundamentalismos. O problema é que a religião costuma ser moralmente justificável até segunda ordem; ela é considerada “inofensiva” até passar a se imiscuir na política e a almejar o poder (o que ela acabará tentando, sempre, onde não houver leis para proteger o Estado laico), para poder impor seus valores não apenas aos crentes, mas aos cidadãos transformados em fiéis. O perigo surge na hora em que tentam nos convencer de que a religião está circunscrita ao âmbito de suas funções e especificidades (assim como o militar no quartel, o religioso na igreja) e quando nos damos conta, já é tarde, já estamos submetidos ao poder irracional dos representantes de Deus, sob suas ordens e seus comandos, sem nem ter que entrar em igreja nenhuma.