O espectador cineasta

Cinema

11.09.14

De 13 a 21 de setembro o Instituto Moreira Salles apresenta uma retrospectiva e seminário com o cineasta espanhol José Luis Guerín

Na abertura (sábado, dia 13), haverá um debate com Hernani Heffner às 18h00. No encerramento, no dia 20, um debate com Geraldo Sarno às 18h. Do dia 16 ao dia 19,  das 14h às 17h30, ocorrerão quatro encontros para discutir o cinema como uma equação entre o acaso e o controle. A retrospectiva e o seminário contam com o apoio do Instituto Cervantes.

Neste depoimento a Ángel Díez e Alexander de Moraes, uma introdução às conversas e mesas de debate, o cineasta lembra, como epígrafe, uma frase de Leonardo da Vinci: “Fechem os olhos e olhem: o que acabaram de ver já não está e o que verão não existe ainda”.

Entender a equação entre acaso e controle – para mim esse é efetivamente um conceito central, muito mais valioso e esclarecedor do que os conceitos de documentário e ficção. Está na natureza mais íntima do cinema. Não compreender isso é não compreender o cinema. Desde suas origens, os irmãos Lumière calculam uma série de operações e deixam outras ao acaso. Por meio dessa política, ou gestão, pode se ver a parte mais pessoal e característica de todos os cineastas. Podemos ver nos grandes cineastas qual a porcentagem de cálculo e qual a porcentagem de acaso contida em seus trabalhos. 

Em minha experiência como espectador, que é provavelmente a espinha dorsal da minha relação com o cinema – porque fiz alguns filmes, alguns poucos filmes, mas nunca deixei de ir ao cinema –, minha educação sentimental no cinema foi pautada principalmente, como diria Godard, pelos grandes “controladores do universo”, os cineastas do controle da forma. Murnau, Dreyer, Ozu, Chaplin. Esses são os cineastas mais valiosos para mim. Foram os cineastas que calcularam, quase milimetricamente, e às vezes obstinadamente, as formas. Deixaram pouco espaço para o acaso. Isso também respondia a uma potência de um cinema-indústria que hoje não existe mais – o grande studio system que também queria controlar o mínimo detalhe da imagem. 

Se vemos uma fotografia de Ozu trabalhando, nota-se que, além de ter pendurado ao pescoço um visor, também há pendurado um cronômetro. Para Ozu, uma tomada não seria perfeita se não estivesse submetida ao tempo que ele havia previsto para ela, o tempo determinado previamente em seu roteiro. No cinema moderno, na medida em que ele saiu do estúdio, é preciso buscar outras estratégias. E se, como espectador, pude formar meu gosto por meio desses grandes controladores do universo, devo dizer que, como cineasta, evidentemente, não sou assim. Meu gosto pelo cinema tem sido sempre vinculado a tentativas de trabalhar com o não controlado, com o imprevisível. E isso chegou a um extremo. Se eu pudesse conhecer plenamente o filme que vou fazer, perderia o desejo de fazê-lo. Quer dizer, abordar uma filmagem, abordar um filme, supõe uma aquisição de conhecimento, um acesso a algo que não conheço, que só posso conhecer fazendo o filme. Então, em meus filmes, provavelmente nos de ficção, pois partem de um esquema prévio mais elaborado, busco que a dinâmica de filmagem transcenda completamente o trabalho planejado por mim. Talvez nos documentários eu proceda um pouco ao contrário. Vou encontrando, ao acaso, uma matéria prima que logo tento construir da maneira a mais calculada possível. Talvez sejam dois caminhos um tanto quanto inversos, abrir-se ao acaso na ficção, organizar-se no documnetário.

Eu não me atrevo a dizer, quando cito cineastas como Chaplin, Ozu ou Dreyer, que fui influenciado por esses cineastas. O que posso dizer é que sinto uma grande gratidão como espectador. Seria muito arrogante de minha parte, ou talvez duvidoso, associar os cineastas de quem mais gostamos com a prática dos filmes que  fazemos. Ou às vezes sim, mas por motivos que o espectador nunca pode chegar a ver. É como dizer “esta sequência ou este plano eu resolvi graças a uma ressonância vinda de Chaplin”. Bem, talvez por isso, o espectador jamais consegue perceber, porque seriam relações com o cinema ou com o trabalho, relações com o trabalho e o cinema, muito indiretas. 

Em En construcción, tentei levar a cabo um princípio que era um entrelaçamento permanente entre as fases de filmagem e montagem. Ao longo de um ano e meio, ia, filmava um pouco, algumas semanas, e montava o que tinha filmado. Era a reflexão sobre o próprio material, sobre o corpo que o material filmado ia tomando na ilha de edição, que me indicava como poderia elaborar as filmagens seguintes. É o cinema nutrindo-se de si mesmo, o que, guardadas as devidas distâncias, tem a ver com o método de trabalho de Chaplin. Chaplin, que começou filmando películas em uma só tarde, para a Keystone, no ano de 1914 fez 160 películas, porque chega a ter pleno domínio e controle de seus filmes – o que costura o trabalho é o tempo. Mas a partir daí dedica três anos de sua vida à realização de um filme. É assim que ele acaba entendendo o que seria a fórmula própria de seu cinema. A reflexão sobre a sucessão de tomadas é que vai nutrindo os materiais para as filmagens seguintes. E isso é até certo ponto o que transcende o próprio trabalho de roteiro.  É uma mise-en-scène que se constrói no próprio set, na própria filmagem, nessa confrontação entre o montado e o filmado. 

Curiosamente, para mim, as coisas mais estimulantes que as novas tecnologias nos oferecem são aquelas que se relacionam com as origens do nosso meio, com a origem do cinema. O que há de interessante nas câmeras digitais? De um lado a possibilidade de fazer um trabalho cinematográfico como um monólogo absoluto, ou seja, poder trabalhar sem equipe. Não que eu queira fazer sempre assim. Agora mesmo estou escrevendo um roteiro para trabalhar com uma equipe. Tenho também o prazer de trabalhar em equipe, de controlar a luz, as formas etc. Mas simultaneamente podemos fazer nossos solilóquios. No caso de Guest, que era um filme de viagem permanente, tinha muito presente a ideia dos caçadores de imagem de Lumière, pois eles mesmos filmavam, revelavam, copiavam e projetavam os filmes viajando pelo mundo. Também graças às novas tecnologias eu pude recuperar o preto e branco, que é muito difícil de usar em condições analógicas industriais normais, trabalhar a película em preto e branco, inclusive em trabalhos circunstanciais. Com as novas tecnologias, parti confiante para recuperar construções narrativas fotográficas – quer dizer, isso também é um paradoxo. O paradoxo é que encontro diante das encomendas que alguns museus de arte contemporâneo me fazem, e que em vez de situar-me precisamente no contemporâneo, têm permitido situar-me o mais longe possível, na origem, no legado de Eadweard Muybridge: trabalhar a partir de fotografias em preto e branco, e sobre tudo recuperar o cinema mudo. Sempre acariciei o sonho e o desejo de fazer um filme mudo. As novas tecnologias me deram essa possibilidade de recuperar um pouco de Lumière e da fotografia.  

Eu me recuso a pensar que o cinema contemporâneo esteja condenado a viver nos museus. É verdade que isso aconteceu comigo, tive ofertas de respeitáveis museus, mas continua me pesando como um tijolo a consideração artística ou cultural  que carregam os museus. Por mais que me permita fazer trabalhos inabordáveis em outras esferas, o espaço do museu continua me parecendo artificial. E continuo a ver a sala de cinema como o lugar natural do cinema, como um espaço de resistência vital. Ainda que as salas nos expulsem, eu necessito sentir que faço parte disso. Caso contrário, seria como me automarginalizar. Creio que temos que ocupar a sala de cinema, não abandoná-la, mesmo que queiram nos expulsar. É o espaço em que me formei. Não sinto prazer ao ver um filme em um computador. Continuo assistindo na sala de projeção. Então, o fato de estar nos meios de comunicação, nos jornais, nas sextas-feiras, que é o dia das estréias dos filmes na Espanha, é o que gera uma tensão social que dá sentido para fazer filmes.

Jean Rouch tinha uma fórmula: “fazer cinema como se”, faire comme si. Pois eu faço os filmes “como se” fossem ser assistidos em uma sala, como se o público fosse vê-los em uma sala. Depois, não é assim, mas ao menos a prática do trabalho pensando no comme si, fazer como se as coisas fossem assim, me dá uma disciplina. É como se… por exemplo, hoje a escuridão não existe mais no cinema. Por que não existe? Alguma vez você viu uma cena noturna ou escura na tela do computador? Se você assiste uma cena noturna em um computador, em vez de ver a escuridão, o que você vê é sua cara refletida na tela, seu próprio rosto refletido na tela do computador. Isso, que na projeção de um filme era um momento mágico, a escuridão ou a penumbra, um lento fade até o quadro inteiramente escuro, de repente deixou de existir. Mesmo numa televisão a escuridão não é escuridão: é um eletrodoméstico que não emite, é uma televisão apagada. Por isso creio que é algo muito importante para todos nós, que fomos crianças que amávamos o cinema, entendermos a importância da escuridão, porque ela não existe mais nos filmes consumidos no computador ou na televisão. 

Não posso renunciar a meu desejo de pensar o cinema no cinema. Eu planejo longas sequências escuras para o meu próximo filme. É uma maneira de trabalhar sobre esse plano hipotético do comme si, “vamos fazer de conta que…”.  Rouch já falava disso quando pensava no maio de 68. Ele dizia: “não era uma revolução, mas nós éramos jovens e fazíamos de conta que era mesmo!” 

Ver filmes é tão importante quanto fazê-los. Há filmes que nos veem envelhecer. Acontece com filmes que vemos e revemos ao longo do tempo: já não é você que vê o filme. O filme é que o vê. São esses filmes que nos dão uma identidade, uma direção, um caminho. Para quem não tem uma relação identitária nacional, esses filmes com os quais se confronta ao longo da vida dão uma certa identidade.

Quando eu era um menino, não havia absolutamente nenhum livro sobre cinema na Espanha e não havia nenhuma escola de cinema onde eu pudesse estudar. Contudo, tínhamos muitas salas de cinema. E íamos muito ao cinema. Hoje me encontro com o paradoxo inverso. Hoje me encontro com muitíssimas pessoas que querem fazer cinema, mas não há mais salas de cinema! E existem muitas escolas de cinema… Uma vez fui convidado para dar aulas em São José de Costa Rica. Eles tinham uma escola de cinema com uma arquitetura maravilhosa, mas na cidade de São José, na Costa Rica, não havia nenhuma sala de cinema. Para mim, isso é um mistério, todo mundo quer fazer cinema e em contrapartida, ninguém quer ver cinema! Um mistério! Nem mesmo os meninos que estudam cinema querem ver filmes. É um mistério desconcertante.  Sempre gosto de perguntar aos alunos por que querem fazer cinema. É um mistério que alguém não se interesse por quem o tenha precedido neste ofício, por quem tenha feito imagens antes dele. No plano da escrita, é muito difícil que um escritor comece a escrever do nada. Um escritor, antes de escrever, o que ele faz é ler! Ler e escrever são duas atividades reversíveis, como fazer filmes e assisti-los. Quem sabe exista um fenômeno de analfabetismo também na escrita? Existiriam pessoas que escrevem sem saber ler?

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