Um filme de Fenyang

Cinema

21.05.15

Dos muitos diretores que mostram seus filmes ao festival com a expectativa de um reconhecimento no final da mostra, um já foi premiado antes mesmo de exibir seu filme. Na cerimônia de abertura da Quinzena dos Realizadores Jia Zhangke recebeu o prêmio Carosse d’Or da Sociedad de Realizadores e Produtores Franceses “pelas qualidades inovadoras de seu cinema, pelo rigor e originalidade de seus modos de dirigir e produzir filmes”. A exibição de Mountains may depart na competição não só confirmou o acerto do prêmio na abertura da Quinzena como ocasionou a primeira reação de entusiasmo em Cannes, tanto na projeção para críticos e jornalistas quanto na sessão de gala para o público do festival.

Jia Zhangke e Zhao Tao em Cannes

O titulo original, Shan he gu ren, é feito de três ideogramas, “Montanha”, “Rio” e “Amizade”, para montar uma frase que que pode ser traduzida por “velhos amigos são como a montanha e o rio”, explicou Zhangke. O titulo para distribuição internacional, Mountains may depart (mais ou menos: “As montanhas podem se mover”), funciona como um contracampo do título chinês, mas para Jia “expressa o mesmo sentimento”.

Três ideogramas no título, três épocas, 1999, 2014 e 2025, três diferentes formatos de imagem e um triângulo amoroso. Para a primeira época, em que a jovem Tao se divide entre dois pretendentes, Liangzi, um trabalhador da mina de carvão, e Jinsheng, um empreendedor que deseja comprar a mina, o clássico formato 1:33, próximo do quadrado dos filmes antes do scope. Para a segunda época, 2014, tela panorâmica, 1:85. Para a terceira, 2025, cinemascope. Ao longo das três épocas e do triângulo amoroso que abre a narrativa uma outra travessia pela China contemporânea, semelhante à proposta no filme anterior do diretor, Um toque de pecado, com distribuição comercial no Brasil no ano passado, mas ainda proibido pela censura chinesa. Uma travessia, como a do filme anterior, mas por uma outra estrada, onde em lugar da violência imediatamente visível temos maior atenção às pequenas mudanças no dia a dia das pessoas, que ou preparam ou coexistem com a violência  de Um toque de pecado – como se o novo filme e o anterior se relacionassem assim como os dois títulos de Mountains may depart, um como contracampo do outro.

Cena de Mountains May Depart 

A narrativa começa em Fenyang, cidade natal do cineasta, na província central de Shanxi, e termina na Austrália, para onde, depois de se divorciar de Tao, Jinsheng migra com o filho Dollar – nome escolhido pelo pai para garantir um futuro bem-sucedido. Entre a China continental e a Austrália, um breve tempo em Hong Kong, onde Liangzi adoece pelo longo tempo de trabalho em minas de carvão e logo desaparece da história.

Assim, campo, contracampo e fora de quadro compõem esse filme que, para Zhangke, nasceu de notas filmadas nos últimos anos. “Dez anos atrás, conseguimos uma câmera digital e filmamos muito. Não eram testes com o equipamento, mas anotações. Não tinha ideia precisa do que iria fazer com essas imagens. Há três ou quatro anos, com uma câmera de melhor qualidade, voltei a filmar notas. Destas sequências registradas nos intervalos de meus filmes precedentes nasceu a ideia de Mountains May Depart. A comparação das imagens feitas há dez anos – elas pareciam vir de um mundo longínquo – com as filmadas recentemente sugeriram um filme construído em torno da passagem do tempo, em torno do que muda nas pessoas com o tempo, na China em particular o que mudou com a introdução do dinheiro como um valor na sociedade. O deslocamento no tempo, não só o deslocamento no espaço, permite compreender o que fazemos. Por isso, 2025. De um futuro imaginado, examinamos o tempo presente”.

Quadro, fora de quadro, deslocamentos. A questão que o filme nos conta está igualmente, ou principalmente, no modo de contar. Em imagens de um prolongado tempo interno, os personagens entram e saem de quadro, desaparecem e são reencontrados pela câmera ou se convertem em presença que se revela apenas pelo som. Nenhuma construção metafórica, destaca, “mas imagens e sons que podem ser trabalhadas livremente pelo espectador”: aviões, helicópteros, trens, carros, um permanente deslocamento. “Go west” numa discoteca em 1999, “canção muito popular desde o final da década de 1980, quando eu estava na universidade” comenta Zhangke. “Nela me interessa mais a ideia de movimento, ‘go’, do que ‘west’, a direção do movimento”. Um caminhão carregado de carvão atolado numa estrada. Uma série de explosões na beira do rio – “no começo da primavera é preciso dinamitar o gelo acumulado no inverno para que o rio possa seguir seu rumo natural, e para nós as explosões na beira do rio anunciam que com a primavera chegava o tempo de namoros”. Um tigre enjaulado num jardim zoológico. Um pequeno avião, monomotor, que perde o rumo e bate na montanha. Uma discussão entre pai e filho sobre a liberdade – “aqui, na Austrália, tenho permissão para comprar um revólver ou um fuzil”, diz o pai antes de perguntar: “liberdade é isso?”.

Montanha, rio, amizade são temas comuns nas tradicionais pinturas de rolo chinesa, observou uma jornalista russa (talvez com a lembrança do ensaio de Eisenstein sobre o modo de representar a passagem do tempo nessas pinturas como exemplo para o cinema). “É o tema de meu filme”, repetiu Zhangke, “a relação entre nossos sentimentos e o tempo. Só podemos compreender o que sentimos levando em conta o passar do tempo. Como vivo na China, no meio das enormes transformações do país, na área econômica e também no comportamento dos indivíduos. Nosso modo de viver foi profundamente alterado com a irrupção do dinheiro no centro de tudo. Proponho algumas imagens, comparo as etapas de algumas vidas com a paisagem em volta a montanha e o rio ao fundo, para estimular as pessoas a se servir delas para propor outras”.

Em julho, no cinema do IMS, o documentário Jia Zhangke, um homem de Fenyang, de Walter Salles, e mais um conjunto de filmes do diretor como um ponto de partida para uma viagem cinematográfica ao que Zhangke define como “uma certa noção de amizade característica da gente de Fenyang, noção que se exprime em chinês pelos caracteres Qing Yi, uma lealdade aos amigos forte como o rio e a montanha”.

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