O bode da seleção

Esportes

14.10.15

Como foi estranha a primeira vitória da seleção brasileira nestas eliminatórias, ontem à noite, em Fortaleza! Não o placar, claro: ganhar de 3 a 1 da patética Venezuela em casa é um resultado que ainda deve ser classificado como normal, apesar de tudo. Esquisito foi ver metade do Brasil, num cálculo por baixo, torcendo pelo inimigo. Torcendo mesmo, de olhos rútilos e corazón grená, apesar das chances diminutas de sucesso.

Para entender o ponto a que chegou o bode da torcida com a seleção brasileira será preciso, para começo de conversa, tirar de campo a ingenuidade. A relação desses dois nunca foi tranquila. Se parece ter sido tranquila, isso se deve àquela tendência de dourar a pílula do passado que é uma das fraquezas (ou forças) humanas.

Por exemplo: antes de ir fazer história no México, de onde voltaria com a fama de maior equipe de futebol de todos os tempos, a seleção de 1970 estava no vermelho com o torcedor. Num dos amistosos de despedida, empatou em 0 a 0 com a Bulgária debaixo das vaias do Pacaembu. Nelson Rodrigues ficou revoltado: “Nunca se viu um escrete tão humilhado e tão ofendido”.

Isso não quer dizer que o time de amarelo esteja onde sempre esteve. De modo algum. Saber que a relação nunca foi tranquila é só o primeiro passo para entender o que vemos hoje. O que vemos hoje é um jogo diferente: uma seleção alojada cada vez mais longe do coração, cada vez mais perto do fígado do torcedor. E de quina!

Em 1970, como em tantos momentos, a pinimba era cobrança. Histérica, pouco razoável, mas cobrança. Fruto do medo de que a equipe não estivesse – ou da certeza mesmo de que não estava – à altura do nosso ideal platônico de seleção. Um ideal que sempre foi simplesmente absurdo: o passe de mágica capaz de nos redimir de forma apoteótica perante o cosmo, só isso. O beijo de língua da princesa no sapão amazônico cheio de verrugas. O perfeito negativo de todas as mazelas e mancadas nacionais.

Como se vê, neurótica a relação sempre foi. O incrível, pensando bem, é que em alguns momentos a seleção brasileira tenha passado perto de atingir nosso ideal inatingível. Quem aguenta tanta pressão?

Talvez fosse difícil evitar o desgaste. Mesmo assim é impressionante que hoje, como naqueles casamentos que chafurdam no volume morto, nós e a amarelinha tenhamos chegado a este ponto além da cobrança, além da decepção e da implicância, além até da humilhação e do ódio. Um ponto em que só o escárnio rancoroso é capaz de fazer cócegas na indiferença.

 – Gol da Venezuela! Arriba hermanos bolivarianos, vamos que dá!

Óbvio que não dava, nem é isso que importa. Pode parecer tentador, mas seria um erro atribuir tamanha briga de foice com o espelho – esse Schadenfreude com a própria desgraça a que chegamos – apenas ao despeito, como na fábula da raposa que desdenha das uvas. Ultrapassamos esse ponto também.

Estamos além até dos vilões habituais. Por exemplo: culpar o técnico é sempre bom, mas já não resolve a parada. Até as travas ensanguentadas da chuteira do Vizcarrondo sabem que Dunga é um pesadelo, cruzamento de despreparo com maus bofes, uma das mais completas traduções desta triste quadra da história nacional. Mas reconheça-se que o problema precede Dunga em muitos anos: ele é mais sintoma do que causa.

Será culpa dos jogadores, então? Bom, faz tempo que uma insegurança doentia trava as pernas e tensiona os nervos da maioria deles, mas uma geração que conta com o gênio de Neymar dificilmente poderia ser acusada de ser a pior da história. Philippe Coutinho é um belo jogador. Oscar também. Se pouco rendem na seleção, eis mais um sintoma.

 Resta o fato de a CBF estar entregue a mafiosos juramentados, o que não estimula o apoio de gente de bem à camisa que leva seu escudo. A feiúra do esquema bandido que manda no futebol mundial virou fratura exposta, mas a verdade é que a corja está lá faz tempo. Além disso, se a cartolagem corrupta é uma praga internacional, por que só nós perdemos em casa de 7 a 1 – o resultado mais vergonhoso da história do futebol? Mais um sintoma, certo, mas de quê?

Não há inocentes aqui. Tudo isso engorda o bode: incompetência, visão curta, corrupção, choradeira, humilhação, essas coisas vão deixando o bicho gigantesco, um Godzilla barbudo a fincar as patas no gramado, varrendo as arquibancadas com o rabo. Será preciso atacar e corrigir cada um desses problemas antes de tirar o monstro do estádio.

Ocorre que o bode não foi parar lá agora. O bode vem de longe. O bode é nossa perda de rumo, de prumo, de tino. O bode é nossa mania de falar mal da seleção de 1982. O bode é nossa mania de falar bem da seleção de 1982. O bode é não termos conseguido até hoje ir além da seleção de 1982. O bode é uma doença do espírito. O bode é esse esteio da identidade brasileira apodrecendo à vista de todos. O bode é o patriotismo bocó do locutor de voz embargada no comercial do banco que encena uma pelada de várzea em câmera lenta. O bode é a decadência da várzea. O bode é a promessa suburbana vendida aos 13 anos para o Shakhtar Donetsk. O bode é o jogo às 10 da noite em dia útil porque a TV manda. O bode é o clássico de arquibancadas vazias. O bode é o 7 a 1 sem luto, o 7 a 1 casual, o 7 a 1 que a gente muda de calçada para não encontrar. O bode é o país não parar tudo o que está fazendo para perguntar ao Tostão o que precisa ser feito. O bode é a dívida que temos com os deuses do futebol: talvez só uma inédita Copa do Mundo sem a presença do Brasil seja capaz de pagá-la, e se for este o preço, que seja. Eu não vou chorar.

Alguns bodes só morrem quando crescem tanto que explodem no infinito.

, ,