Pi, o filme líquido de Ang Lee

No cinema

21.12.12

As aventuras de Pi é uma fábula sem moral, ou antes, uma fábula cuja moral é simplesmente a necessidade que temos de acreditar na ficção como meio de enfrentar a dureza e a opacidade do real. Contra essa dureza e essa opacidade, Ang Lee fez um filme líquido e translúcido. Seu elemento é a água, sua marca visual é a transparência. Até suas noites são luminosas e nítidas.

http://www.youtube.com/watch?v=dCKVBRvsX1Y

Qualquer sinopse do filme dirá que se trata da insólita viagem de um náufrago adolescente, Pi Patel (Suraj Sharma), com um tigre de Bengala num bote salva-vidas. Mas o naufrágio do navio que os deixou à deriva no mar só ocorre por volta dos 40 minutos de jogo corrido. Antes disso, temos o relato floreado da infância e adolescência de Pi na Índia, onde seu pai tinha um zoológico. E vamos combinar: aguentamos toda aquele exotismo de almanaque, a filosofia barata e a música xaroposa só para poder ver as espetaculares cenas no mar.

Abolição das fronteiras lógicas

E não perdemos por esperar. As imagens aquáticas são arrebatadoras, e pouco importa que tenham sido criadas digitalmente – como, de resto, quase toda a movimentação do tigre e dos outros animais. O 3-D, no caso, serve para realçar a irrealidade desse mundo marítimo atemporal e sem pontos geográficos de referência. Em numerosas passagens, reflexos e transparências fazem com que céu e mar se confundam, numa comunhão cósmica, se não metafísica. Cinema também é isso: abolição das fronteiras lógicas, maravilha pura e simples.

O alívio, para quem viu o trailer ou leu os textos de divulgação, é constatar que não, o rapaz e o tigre não ficam amiguinhos, ao estilo Disney/Spielberg. A relação entre eles é muito mais de guerra ou jogo do que de afeto. A cena em que Pi urina no bote para marcar território e recebe de volta um poderoso jato de urina é emblemática dessa relação. Não por acaso, o instrumento de poder é o meio líquido.

Ang Lee é um cineasta que divide opiniões. Para os admiradores, é um diretor versátil, que não se sobrepõe vaidosamente aos trabalhos que produz. Por isso é capaz de se dar bem tanto na comédia moderna de costumes (Banquete de casamento) como na adaptação de um romance oitocentista (Razão e sensibilidade), na subversão do ethos másculo do faroeste (O segredo de Brokeback Mountain) ou na estilização das artes marciais orientais (O tigre e o dragão). Uma espécie de Stephen Frears sino-americano, em suma. Para os detratores, essa heterogeneidade seria sintoma de falta de marca autoral, o que relegaria Lee, na melhor das hipóteses, à categoria dos bons artesãos.

Dívida com Scliar

Qualquer que seja o veredicto, o que importa são os filmes. E As aventuras de Pi é um que merece ser visto, até pelo saudável questionamento, nos minutos finais, da confiabilidade do narrador, o que traz a possibilidade de uma releitura retrospectiva. É uma boa alternativa para quem quiser se divertir com a família no cinema nesta época de férias sem se sentir ensurdecido e idiotizado pela estridência dos blockbusters infanto-juvenis.

Uma última palavra sobre Pi. O filme se baseou no romance Life of Pi, do espanhol Yann Martel, que por sua vez confessou ter-se inspirado no livro Max e os felinos, de Moacyr Scliar (1937-2011), em que um judeu alemão, fugindo no nazismo, sofre um naufrágio e acaba atravessando o Atlântico num bote junto com um jaguar. É uma pena que o escritor gaúcho não tenha sobrevivido para presenciar o êxito mundial desse exuberante desdobramento de sua pequena fábula.

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