Este é o quinto post da série Crônicas musicais de Luís Martins, que está sendo publicada às quintas-feiras no Blog do IMS. A crônica foi publicada originalmente no jornal O Estado de S. Paulo em 7/5/1965, dois dias após a morte de Ascenso Ferreira. A introdução que precede o texto de Luís Martins é de autoria de Ana Luisa Martins, filha do cronista.
Se é verdade que os precursores do rap no Brasil foram os repentistas nordestinos, como ensina o rapper Rappin’ Hood, talvez fosse hora de começarmos a dar ao pernambucano Ascenso Ferreira (1895-1965) o lugar que merece na nossa história cultural. Embora não fosse repentista, Ascenso foi certamente o primeiro poeta (ou letrista?) brasileiro a trabalhar as semelhanças entre poesia e música. Não só isso. Era um grande showman. Vê-lo declamar/cantar seus versos era coisa de cair o queixo, dizia quem viu. Manuel Bandeira, que conheceu Ascenso no final dos anos 1920 e prefaciou sua antologia Poemas (1951) , assim se referiu à fusão de versos metrificados e livres, rimas, toadas musicais e frases soltas do colega: “Não conheço, na poesia brasileira culta, na poesia de nenhum outro país, poeta que, a esse respeito, supere o pernambucano”. Há quem diga que o “Trem de ferro”, de Bandeira, cujos versos iniciais evocam o barulho de uma locomotiva (“café com pão/café com pão/ café com pão”) inspiraram-se no “Trem de Alagoas” de Ascenso.
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“Trem de Alagoas” é, talvez, o poema mais conhecido do pernambucano. Fez sucesso entre os modernistas e foi musicado por Waldemar Henrique. Lê-se com frequência que foi musicado também por Villa-Lobos. Tenho minhas dúvidas. Posso afirmar que Villa musicou a primeira frase do poema, pois vejo em minha (desculpem) espetacular edição original numerada de Poemas a réplica de um pedaço de partitura onde Villa escreveu “o futuro de trem Alagoas”, datou (11/6/1930) e assinou embaixo. Se o trem teve futuro não sei dizer (alguém?). O fato é que a composição não consta da relação das obras do compositor. Pelo menos não com este nome.
Maria Bethânia, em sua gravação de “Trenzinho do Caipira”, diz alguns versos do “Trem de Alagoas” antes de começar a cantar. O fato talvez tenha contribuído para fomentar a confusão entre o trem do pernambucano e o do caipira. Salvo o meio de transporte, porém, as duas letras pouco têm a ver. A melodia hoje conhecida por “Trenzinho do Caipira” foi composta por Villa-Lobos em 1930 e integrava as Bachianas nº 2, como se sabe; a letra que a popularizou foi escrita por Ferreira Gullar em 1975, após a morte do compositor.
Manoel Bandeira não foi o único a se embasbacar com a inventividade do bardo pernambucano. Ascenso Ferreira inspirou e continua a inspirar vários poetas e artistas, de Alceu Valença (“Vou danado pra Catende”) ao DJ Dolores e a Orchestra Santa Massa, cujo “Catimbó” recria um poema seu e toma emprestada sua voz.
Nunca estive com Ascenso Ferreira, mas desde criança ouvi falar dele. Imaginava-o um homem gigantesco, de voz grave e tonitruante, cara fechada e um tanto ameaçadora, mas que dançava ao falar. Meu pai, que o conheceu e o “assistiu”, estava entre seus grandes admiradores.
Ana Luisa Martins
Ascenso, o bom gigante
Luís Martins
Ascenso Ferreira era uma figura extraordinária. Conheci-o em 1946, quando veio a São Paulo em companhia de Lula Cardoso Aires, meu amigo desde a imemorial década de 1930, tempo do tenentismo militante, de O teu cabelo não nega, do Para Todos de Álvaro Moreyra e dos chopes boêmios da velha Lapa. Não sei se foi Lula, em 1946, quem me apresentou ao autor de “Catimbó”; sei que ficamos logo íntimos, o que não é vantagem nenhuma, porque ele tinha o dom de se fazer íntimo de toda a gente ao primeiro contato.
Em 1951, voltou a São Paulo, a fim de lançar a monumental edição de seus Poemas, cada exemplar acompanhado de dois discos com gravação de sua voz, o que era novidade para a época. Vendeu-me um (“Você desculpe, meu nego, mas dar não posso”), com pequeno abatimento, mas grande dedicatória: “Ao Luís, madeira que cupim não rói” etc. Custava, se não me engano, um conto e quinhentos ou dois contos de réis, uma pequena fortuna para a época. “É dinheiro em caixa”, garantiu-me, com a maior convicção.
Uma figura extraordinária, repito: curiosa mistura de esperteza, candura, ingenuidade, caipirismo, exibicionismo e vaidade – como homem, o que era como poeta: misto de bardo popular e grande poeta erudito, de verdade. Dos mais saborosos da nossa língua e talvez o mais espontâneo, o mais natural do modernismo indígena, que assimilou a seu modo, sem prejudicar, de forma alguma, as características mais profundas e marcantes do seu estro, antes valorizando-as pela liberdade da rima e da métrica, autorizada e consagrada pela nova escola.
Mas o leitor dos seus mais belos poemas jamais poderá imaginar o que eram eles, ditos pelo próprio Ascenso. Vê-lo declamar era assistir a um inolvidável show. De minha parte, nunca vi coisa igual: a voz, o acento, a cadência, a mímica, a expressão, de repente a declamação virava música, Ascenso cantava… Impressionante.
E agora vejo a notícia de sua morte. Mais um dos modernistas da primeira hora que se vai!…Ainda há apenas dois anos, em 1963, recebei seu último livro, com carinhosa dedicatória: Catimbó e outros poemas. Fiquei de escrever alguma coisa, fui deixando para depois – como tantas vezes acontece – acabei não escrevendo nada, nem lhe agradecendo a remessa do volume. Ultimamente, soube que ele andava doente. Mas Recife – minha Nossa Senhora! – é tão longe!… Não importa: sinto uma espécie de remorso.