Ascenso, o bom gigante

Séries

11.07.13

Este é o quinto post da série Crônicas musicais de Luís Martins, que está sendo publicada às quintas-feiras no Blog do IMS. A crônica foi publicada originalmente no jornal O Estado de S. Paulo em 7/5/1965, dois dias após a morte de Ascenso Ferreira. A introdução que precede o texto de Luís Martins é de autoria de Ana Luisa Martins, filha do cronista.

Ascenso Ferreira

Se é verdade que os precursores do rap no Brasil foram os repentistas nordestinos, como ensina o rapper Rappin’ Hood, talvez fosse hora de começarmos a dar ao pernambucano Ascenso Ferreira (1895-1965) o lugar que merece na nossa história cultural. Embora não fosse repentista, Ascenso foi certamente o primeiro poeta (ou letrista?) brasileiro a trabalhar as semelhanças entre poesia e música. Não só isso. Era um grande showman. Vê-lo declamar/cantar seus versos era coisa de cair o queixo, dizia quem viu. Manuel Bandeira, que conheceu Ascenso no final dos anos 1920 e prefaciou sua antologia Poemas (1951) , assim se referiu à fusão de versos metrificados e livres, rimas, toadas musicais e frases soltas do colega: “Não conheço, na poesia brasileira culta, na poesia de nenhum outro país, poeta que, a esse respeito, supere o pernambucano”. Há quem diga que o “Trem de ferro”, de Bandeira, cujos versos iniciais evocam o barulho de uma locomotiva  (“café com pão/café com pão/ café com pão”) inspiraram-se no “Trem de Alagoas” de Ascenso.

 

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“Trem de Alagoas” é, talvez, o poema mais conhecido do pernambucano. Fez sucesso entre os modernistas e foi musicado por Waldemar Henrique. Lê-se com frequência que foi musicado também por Villa-Lobos. Tenho minhas dúvidas. Posso afirmar que Villa musicou a primeira frase do poema, pois vejo em minha (desculpem) espetacular edição original numerada de Poemas a réplica de um pedaço de partitura onde Villa escreveu “o futuro de trem Alagoas”, datou (11/6/1930) e assinou embaixo. Se o trem teve futuro não sei dizer (alguém?). O fato é que a composição não consta da relação das obras do compositor. Pelo menos não com este nome.

Villa-Lobos

Maria Bethânia, em sua gravação de “Trenzinho do Caipira”, diz alguns versos do “Trem de Alagoas” antes de começar a cantar. O fato talvez tenha contribuído para fomentar a confusão entre o trem do pernambucano e o do caipira. Salvo o meio de transporte, porém, as duas letras pouco têm a ver. A melodia hoje conhecida por “Trenzinho do Caipira” foi composta por Villa-Lobos em 1930 e integrava as Bachianas nº 2, como se sabe; a letra que a popularizou foi escrita por Ferreira Gullar em 1975, após a morte do compositor.

Manoel Bandeira não foi o único a se embasbacar com a inventividade do bardo pernambucano. Ascenso Ferreira inspirou e continua a inspirar vários poetas e artistas, de Alceu Valença (“Vou danado pra Catende”) ao DJ Dolores e a Orchestra Santa Massa, cujo “Catimbó” recria  um poema seu e toma emprestada sua voz.

Nunca estive com Ascenso Ferreira, mas desde criança ouvi falar dele. Imaginava-o um homem gigantesco, de voz grave e tonitruante, cara fechada e um tanto ameaçadora, mas que dançava ao falar. Meu pai, que o conheceu e o “assistiu”, estava entre seus grandes admiradores.

 

Ana Luisa Martins

 

Ascenso Ferreira

Ascenso, o bom gigante

Luís Martins

 

Ascenso Ferreira era uma figura extraordinária. Conheci-o em 1946, quando veio a São Paulo em companhia de Lula Cardoso Aires, meu amigo desde a imemorial década de 1930, tempo do tenentismo militante, de O teu cabelo não nega, do Para Todos de Álvaro Moreyra e dos chopes boêmios da velha Lapa. Não sei se foi Lula, em 1946, quem me apresentou ao autor de “Catimbó”; sei que ficamos logo íntimos, o que não é vantagem nenhuma, porque ele tinha o dom de se fazer íntimo de toda a gente ao primeiro contato.

Em 1951, voltou a São Paulo, a fim de lançar a monumental edição de seus Poemas, cada exemplar acompanhado de dois discos com gravação de sua voz, o que era novidade para a época. Vendeu-me um (“Você desculpe, meu nego, mas dar não posso”), com pequeno abatimento, mas grande dedicatória: “Ao Luís, madeira que cupim não rói” etc. Custava, se não me engano, um conto e quinhentos ou dois contos de réis, uma pequena fortuna para a época. “É dinheiro em caixa”, garantiu-me, com a maior convicção.

Uma figura extraordinária, repito: curiosa mistura de esperteza, candura, ingenuidade, caipirismo, exibicionismo e vaidade – como homem, o que era como poeta: misto de bardo popular e grande poeta erudito, de verdade. Dos mais saborosos da nossa língua e talvez o mais espontâneo, o mais natural do modernismo indígena, que assimilou a seu modo, sem prejudicar, de forma alguma, as características mais profundas e marcantes do seu estro, antes valorizando-as pela liberdade da rima e da métrica, autorizada e consagrada pela nova escola.

Mas o leitor dos seus mais belos poemas jamais poderá imaginar o que eram eles, ditos pelo próprio Ascenso.  Vê-lo declamar era assistir a um inolvidável show. De minha parte, nunca vi coisa igual: a voz, o acento, a cadência, a mímica, a expressão, de repente a declamação virava música, Ascenso cantava… Impressionante.

E agora vejo a notícia de sua morte. Mais um dos modernistas da primeira hora que se vai!…Ainda há apenas dois anos, em 1963, recebei seu último livro, com carinhosa dedicatória: Catimbó e outros poemas. Fiquei de escrever alguma coisa, fui deixando para depois – como tantas vezes acontece – acabei não escrevendo nada, nem lhe agradecendo a remessa do volume. Ultimamente, soube que ele andava doente. Mas Recife – minha Nossa Senhora! – é tão longe!… Não importa: sinto uma espécie de remorso.

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