A imaginação literária (II): Romances da vida utópica

Séries

15.05.13

Nesta semana o Blog do IMS publica A imaginação literária, trilogia de artigos do jornalista e ensaísta Léo Schlafman iniciada na segunda-feira com O cérebro do jaguar.

Miguel de Cervantes e François Rabelais

Miguel de Cervantes e François Rabelais

Um “espectador comum” de uma exposição de quadros dificilmente diria tanta besteira, e com tanta convicção, como o crítico francês Gerald Messadié, de gosto clássico, que no livro La messe de saint Picasso provou que Picasso era mau pintor e espinafrou todos os seus quadros, um a um, com extensa argumentação não destituída de certa lógica, mas sempre às avessas. Isto é, com a mesma argumentação ele poderia estar elogiando Picasso, se pudesse ler os quadros dele com boa vontade, sem se deixar envolver pelas polêmicas que sempre cercaram a atividade picassiana e a arte moderna no decorrer do século XX.

A propósito de artes plásticas, Herbert Read (A arte de agora agora) vislumbrou, a partir dos anos 1960, a possibilidade de o espectador se tornar artista ao contemplar o quadro, possibilitando assim a cada um criar sua própria obra. Pintor e espectador se unem em participação comum, isto é, no objeto criado. Em poesia há discussão semelhante e permanente. T.S. Eliot, em seu ensaio sobre Dante, afirmou que “a poesia genuína pode ser comunicadaantes de ser entendida”. Sua experiência como leitor de poetas que escreveram em línguas que ele dominava mal demonstrou que esta sua impressão não era fantástica ou produto da imaginação. Proust disse que, embora admirasse os versos de Mallarmé, não sentia necessidade de compreendê-los perfeitamente. E o português José Gomes Ferreira, ao reler um de seus poemas, exclamou: “Estes versos são tão íntimos que nem eu os entendo.”

É sintoma dos tempos modernos que os melhores poetas e muitos dos mais sagazes leitores se revoltem contra a ideia de uma poesia em que predomine a clareza. Crítico e poeta, António Ramos Rosa chegou a afirmar que “é um absurdo que se defenda a clareza em poesia, se se entende por clareza a relação unívoca entre signoe significado… Mas quando os escritores perdem a confiança nas estruturas da sociedade parecem viver numa babel em que a confusão das línguas dá origem à impossibilidade da escrita normal. Fernando Pessoa disse que o fim da arte é não ser compreendida. Lautréamont, ao contrário, disse que não existe nada que seja incompreensível.

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Nos romances há poucos personagens-escritores memoráveis, como o Bergotte de Proust ou o Pursewarden de Durrell (O quarteto de Alexandria). Mas alguns dos melhores heróis são incessantes leitores, e o maior de todos, Dom Quixote, é leitor até a loucura. A medula mesma de Dom Quixote é o ato de ler: livros de cavalaria ou manuscrito árabe, caderneta de notas, história italiana de ciúmes guardada numa gaveta, poema escrito por suicida. A Primeira Parte de Dom Quixote não é apenas romance, primeiro em data e qualidade dos grandes romances. É o romance dos romances. Ou ainda é o romance contra os romances. Ou acima de tudo o romance de um leitor de romances, o romance de uma biblioteca de romances – tudo passado pelo liquidificador da cabeça desaparafusada de Dom Quixote e exibido, em carne e osso (sobretudo em osso), na vida real. Dom Quixote é a crítica dos romances, feita num romance. Em Dom Quixote o leitor de romances se tornou enfim o protagonista de romances, e o protagonista de romances se tornou o protagonista de sua própria vida utópica – aquela que pedia para vir à tona por esforço heroico… de imaginação.

La Bruyère disse numa de suas boutades que devolvia ao público aquilo que o público lhe emprestou. Mas o contrário também ocorre, caso em que os leitores podem dizer que vivem a vida que os romances emprestaram. George Steiner, em Presenças reais (As artes do sentido), perguntou-se se as pessoas ainda são capazes de fruir uma obra – ler um texto, ver um quadro, escutar uma sonata. Os espectadores ainda vivem a era inaugurada por Rimbaud e Mallarmé. Ambos profetizaram o fim do mundo clássico, no qual a palavra designava uma coisa. Desde então pessoas se obstinam em teorizar o fim do discurso, o texto autorreferencial, a autonomia da estrutura, a morte de Deus antes de tudo, e do homem em seguida. Os compositores proclamaram o fim da música, os artistas o fim da arte… De tudo isto ficou uma pesada herança: vive-se, com efeito, a época que Steiner chamou de “era do epílogo”. É a era em que o mundo deixou de ter sentido, no qual o sentido de uma obra, qualquer que ela seja, não é mais a razão de ser da leitura. Mas na qual, ao contrário, cada uma das leituras outorga razão de ser à obra.

A intenção do artista criador deixou de importar. Só conta aquilo que arbitrariamente o leitor põe na obra que ele vai desconstruindo, selvagemente.

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A maioria dos leitores, como disse George Orwell, é incapaz de perceber mérito artístico nos romances que contradizem suas opiniões, e aí está um dos princípios da estética. Ler é ato criativo, exercício contínuo de imaginação, que empresta carne, sentimento e cor às palavras lavradas na página. Uma pessoa quando lê é extremamente vulnerável e só se sente feliz com os autores que compartilham suas intenções, interesses, preconceitos, ilusões, pretensões.

Rabelais foi levado à glória pelo público exclusivamente masculino, embora a regra seja o público misto, ou acima de tudo o diálogo contraditório entre dois públicos que não pedem a mesma coisa a um romance e não veem nele a mesma coisa. Para a mulher, como para Machado de Assis, a realidade é Capitu. Para o crítico masculino a realidade é antes de tudo Machado de Assis. O romance ainda continua a ser o gênero em que a mulher existe, no qual o mundo gira ao redor dela e onde as pessoas se apaixonam por ela ou contra ela. É singular que o Gargantua de Rabelais, destinado exclusivamente ao homem, tão hermeticamente fechado à mulher, tenha permanecido um dos livros canônicos do povo mais profundamente impregnado do odore di femmina…

Eric Gans (revista Poésie, terceiro trimestre de 1978), afirmou que modernamente só há duas maneiras de escrever, embora nenhuma delas se realize perfeitamente, o que desencoraja muitas vezes as almas sensíveis no despertar de seu impulso: realismo e irrealismo, ou para melhor defini-las segundo o desejo absoluto do leitor: pornografia e delírio. Pode-se escrever para suscitar desejo, ou para satisfazer desejo de escrever. A escrita pornográfica é pura ascese. A leitura vai mais depressa que a escrita. A diferença de velocidade não é secundária, mas essencial. A pornografia se escreve friamente, de preferência numa peça mal aquecida, no inverno, não por gosto de sofrimento, mas, ao contrário, pela preocupação de aliviá-lo.

Num outro plano, Stendhal afirmou que a velocidade na escrita proporciona facilidade, alegria. Certa velocidade no ritmo enriquece as sensações do leitor. O leitor se identifica com os personagens, diferencia uns dos outros e cada personagem do mundo que o cerca. Ele também se identifica com o próprio tema do discurso. Privilegiar a identificação com o personagem é adotar atitude, digamos, realista. O desejo do leitor se liga a objetos particulares dos personagens, entre os quais sua própria particularidade ameaçada de se diluir. Os seres humanos se assemelham precisamente nisto: diferem uns dos outros pelo pormenor de seus desejos.

O leitor de romances – realistas e irrealistas, pornográficos e delirantes – ou o espectador de quadros nas galerias ou das peças no palco é o ser que se abstrai de seus próprios ligamentos sociais para receber outros pelas mãos do autor. Acabado o espetáculo ou o livro ele continua o bom chefe de família que sempre foi – a acreditar na doutrina da catarse. Suas tentações de desmedida, de selvageria, terão sido expurgadas. No grande continente das obras de arte, como no inconsciente, tudo é contemporâneo, nada se contradiz. Tudo é luz e sombra, simultaneamente.

* Léo Schlafman, jornalista e ensaísta, é autor de A verdade e a mentira (novos caminhos para a literatura), publicado pela Civilização Brasileira.