Assim é Hollywood

Cinema

16.05.13

O grande Gatsby

(Cannes) Retirada por um instante do preciso contexto em que existe no filme, a conversa entre o Nick Carraway de Tobey Maguire e o Jay Gatsby de Leonardo DiCaprio sobre a necessidade e impossibilidade de voltar a viver o passado parece resumir o conflito que alimenta O grande Gatsby de Baz Luhrmann – exibido na abertura do Festival e daqui a poucos dias em cartaz nos cinemas brasileiros. Contrário à advertência de Carraway (“impossível viver o passado outra vez”), o filme se deixa levar pelo desejo de de voltar ao tempo das superproduções de Hollywood. Contrariando Gatsby, o filme repete para si mesmo, no seu estilo de composição, a impossibilidade de reviver o passado. E assim, jogando contra os protagonistas da história, e principalmente contra o espírito do livro de F. Scott Fitzgerald (em que a fixação de Gatsby no retorno ao que vivera cinco anos antes é uma sofrida viagem ao passado), esta coprodução entre Austrália, onde nasceu o realizador, Inglaterra e Estados Unidos volta ao modelo de grande produção industrial do passado, de olho no que imagina ser o grande produto industrial do futuro. Estamos na Hollywood do tempo em que os grandes estúdios reafirmavam a força de seus produtos sobre os da então nascente televisão preenchendo a tela grande com cenas de muitos extras todo o tempo em movimento para uma câmera empenhada em acrobacias aéreas, voos rasantes através de nuvens e paredes, mergulhos e saltos ornamentais em piscinas olímpicas ou sinuosas e desenfreadas corridas de automóvel. Estamos na Hollywood do passado, mas talvez de um modo mais frenético, graças aos efeitos em 3D. Quando algo não se precipita para cima da câmera, como se fosse despencar da tela para cima da plateia, é ela, a câmera, que se joga para cima de um ponto perdido no fundo do cenário em constantes movimentos de zum.

Parece excessivo dizer assim. Mas é assim, mais que assim, que O grande Gatsby de Luhrmann se propõe a conversar com o espectador, por excessos. Dos cenários aos gestos dos intérpretes, do colorido da imagem ao desenho dos figurinos, da projeção da voz dos personagens ao ritmo da montagem, temos uma intencional busca de imagens de um exagero evidente, caricatural, para traduzir tanto a ideia de poder e grandeza, do fausto em torno do palácio de Gatsby, quanto a de miséria e marginalidade em torno da descolorida e cinzenta garagem de Wilson. Não se trata tanto de, por meio do espetáculo, devolver o espectador a uma qualquer experiência vivida do lado de fora do cinema, quanto de procurar devolvê-lo ao mundo do cinema produzido pela grande indústria do audiovisual.

Muito provavelmente, foi em torno dos filmes de Hollywood feitos a partir de obras literárias que começamos a nos referir a adaptações ciematográficas, e a expressão, aqui, cabe com perfeição. O que O grande Gatsby de Baz Luhrmann pretende não é dialogar com o livro de Scott Fitzgerald (que ele não propriamente leu mas ouviu, num audiolivro, em 2004, na Sibéria, enquanto filmava Moulin Rouge e trazia na memória o filme de Jack Clayton, que viu quando jovem na Australia). Em lugar de um filme inspirado pelo livro, uma adaptação do livro às exigências da produção cinematográfica. Quando surge na tela, estranhamente mas não muito, Leonardo DiCaprio parece Robert Redford. Parece de fato interpretar o ator, mostrar como ele interpretou Jay Gatsby no Grande Gatsby dirigido em 1974 por Jack Clayton. Talvez uma imitação, talvez uma caricatura, talvez uma brincadeira de ator para ator, mas certamente a solução adequada para um modelo de produção tão fortemente autorreferenciado quanto o de Hollywood. É possível que em seu Gatsby Redford tenha, como DiCaprio, procurado interpretar não exatamente o personagem de Fitzgerald, mas a atuação de Alan Ladd na versão anterior, dirigida em 1949 por Elliot Nugent. E não é tão absurdo quanto parece à primeira vista imaginar que Ladd, na medida do possível, procurou interpretar o ator da primeira adaptação cinematográfica do livro, produzida em 1926, logo depois da primeira edição do livro, interpretada por Warner Baxter e dirigida por Herbert Brenon. Foi mais ou menos nesse tempo, pouco antes do aparecimento dos primeiros filmes sonoros, que Hollywood plantou as bases desse modelo de cinema, ainda hoje com mais ampla difusão em todo o mundo, que não cessa de repetir que o mundo deve se adaptar a ele. That’s Entertainment, ou, de acordo com tradução do titulo do primeiro da série das três homenagens-peças de promoção do cinema norte-americano da segunda metade da década de 1970: Assim é Hollywood.

O grande Gatsby

Na abertura do Festival, dentro do cinema, a necessidade e impossibilidade de voltar a viver o passado, e do lado de fora, discussões sobre o presente do audiovisual – um estudo francês para uma segunda etapa da política de exceção cultural prevê a taxação de todos os produtos com conexão à internet, celulares, computadores, tablets, para apoiar a produção cultural, livros, discos e filmes; um encontro de diretores de cinema para uma assembleia aberta de cineastas, duas mesas de debates: uma sobre as condições de criação em diferentes pontos do mundo, outra sobre as consequências da crise europeia sobre as políticas culturais.

Passado, presente e promessas para o futuro imediato, para os próximos dias. Duas dessas boas promessas de um certo modo são viagens ao passado. Claude Lazmann apresenta O último dos injustos (Le dernier des injustes) documentário de quase quatro horas de duração apoiado numa série de entrevistas filmadas em 1975, em Roma, com Benjamin Murmelstein, único sobrevivente do conselho do gheto de Theresienstadt, na Tchecoslováquia. Marcel Ophuls apresenta Um viajante (Un Voyageur). Dezoito anos depois de seu último filme, Veillées d’armes (lançado no Festival de Cannes de 1994), uma espécie de livro de memórias mas em filme, com fragmentos de Le Chagrin et la pitié (1969) e de The memory of justice (1976) e entrevistas com cineastas que ele admira.

Na rua, a muita gente reunida pelo festival, entre a chuva fina e fria que cai na cidade, pUde ver bancas de jornais, na rua em frente ao palácio, um anúncio na capa da revista The Hollywood Reporter (com uma ilustração inspirada na conhecida foto de Alberto Ferreira montada sobre a imagem de uma favela do Rio de Janeiro) sobre uma próxima produção que vai se chamar Pelé. Por cima da ilustração, uma frase promocional (“A boy with nothing changed everything”, “Um garoto sem nada mudou tudo”) promete uma adaptação da história de Pelé ao mundo do cinema.

* José Carlos Avellar é coordenador de cinema do IMS.

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