O outro Cromwell

Literatura

16.05.13

Hilary Mantel

Hilary Mantel, de 61 anos e carinha de mamãe ganso, é no momento a maior VIP das letras britânicas – não tem pra ninguém. Com a avidez de uma cleptomaníaca, virou a primeira mulher (e o primeiro autor inglês) a embolsar duas vezes o cobiçadíssimo Booker Prize, façanha só realizada antes pelo australiano Peter Carey e o sul-africano Coetzee. De lambuja, também abiscoitou o prêmio Costa de 2012, de pedigree igualmente principesco.

A proeza se torna ainda mais formidável se lembrarmos de que foi obtida com uma dobradinha: O livro de Henrique, que acaba de sair no Brasil (Record, 363 páginas, tradução de Heloísa Cardoso Mourão) é a sequência de Wolf Hall. E ambos compõem um díptico a que será adicionado um terceiro título, fechando a trilogia sobre a ascensão e queda de Thomas Cromwell, o poderoso ministro de Henrique VIII.

Papeio com Hilary num dia em que ela aparece na sede da A. M. Heath & Company, a sortuda agência literária que a representa. A escritora se instala num sofá azul-varizes, cordial e até entusiasmada – como a maioria das pessoas, não leva a mal um elogio. Ao lado dela, Gerald, marido e secretário, folheia uma revista e de vez em quando sapeia a conversa com o rabo do olho, como uma sentinela entediada.

EU: Por um tempão, embora paparicada pela crítica, a senhora levou chá de cadeira dos prêmios literários. Nada como um dia depois do outro, não?

HM: Exato. Mas não sei explicar a mudança. Talvez seja do período histórico de Henrique VIII, uma figura carismática que continua a fascinar os ingleses. De repente, desatei a empilhar prêmios. Houve até um crítico que ficou emburrado comigo, se queixando de que deixei de ser o seu pequeno segredo… Obviamente, sou a mesma pessoa e a mesmíssima escritora – só me tornei visível.

Antes de mais nada, convém não confundir Thomas Cromwell com o posterior Oliver Cromwell, líder da Revolução Puritana e que em 1649 assinou a sentença de morte do rei Carlos I. Thomas (1485-1540) foi uma espécie de revisor da crônica existencial de Henrique VIII: escanteava as rainhas indesejadas, baixava a bola das filhas inconvenientes do monarca e bombeava adrenalina quando a rotina estava ficando tediosa. Assim, foi Thomas que providenciou a anulação do casamento do rei com Catarina de Aragão, precipitando a ruptura com a igreja Católica e o advento do Anglicanismo. E também foi ele o cupido de Henrique VIII e Ana Bolena (segundo consta, um pedaço de mau caminho). E continuou zelando para que, no leito real, a fila andasse. E, claro, foi ele quem empurrou Thomas More (o santo autor da Utopia) para o cadafalso.

Obviamente, estamos falando de um romance histórico – mas também de uma história profundamente romanesca. Um crítico inglês espinafrou a atribuição do prêmio a Hillary Mantel, alegando que ela não passa de uma escritora middlebrow e que habitará apenas uma nota de rodapé na literatura britânica do século 21. O cara reclamou pelo Booker não ter sido concedido a Umbrella, de Will Self. Azar o dele: os filistinos leitores salivaram torrencialmente pelo romance de Mantel e desembestaram para as livrarias (a estimativa é de que o Booker turbina em 900% as vendas de cada título).

EU: Como surgiu a ideia para essa trilogia?

HM: Bom, por volta de 2004 percebi que se aproximava uma efeméride importante em 2009: os 500 anos da entronização de Henrique VIII. Era inevitável que o mundo cultural britânico soltasse faísca. Ele estaria em todo lugar: mídia, museus, livrarias. Era agora ou nunca: ou eu aproveitava para falar de Thomas Cromwell ou metia a viola no saco. Já na escrita do primeiro capítulo senti uma felicidade imensa e instantânea. Um daqueles sortilégios mágicos da vida.

A ficção histórica é um gênero que está explodindo internacionalmente. Menos no Brasil, cuja memória não vai além dos últimos cinco minutos. A explicação mais óbvia para tal coqueluche (partilhada pelas biografias e romances policiais) é a míngua de fantasia e fabulação de grande parte da literatura contemporânea “de prestígio” – ou seja, o déficit de narratividade numa forma que é, antes de tudo, narrativa. Como? Ficção histórica é escapista? Como Guerra e paz e Memórias de Adriano, por exemplo? Mais: o modelo histórico serve tanto a estruturas canônicas (como as de Mantel) quanto às pirotecnias vanguardistas do romance translit, cujo exemplo mais augusto é Cloud atlas, de David Mitchell (que na mesma tacada manipula várias épocas).

EU: Uma das façanhas mais cativantes do livro é a linguagem – muitas vezes uma cilada para os romancistas históricos. Seu estilo é claro e preciso e reflete o tom da época, mas sem afetação…

HM: Obrigada. Tem muito a ver com a escolha exata das palavras (Flaubert já dizia que não existem sinônimos), mas neste caso sobretudo com o ritmo. O truque é não deixar o leitor se esquecer de que estamos falando de um outro tempo – por isso salpico aqui e ali um vocabulário quinhentista, mas com parcimônia. Não quero forçar o pobre leitor a pousar o livro para ir ao dicionário a cada parágrafo.

Mantel deita e rola na atualização de O livro de Henrique. É impossível ler as passagens de interrogatório e tortura – experimentando uma perturbadora simpatia pela glacial realpolitik do afável Cromwell – e ao mesmo tempo considerar a ficção histórica irrelevante nos dias de hoje. E é a proficiência técnica da autora que lhe permite ao mesmo tempo assobiar e chupar cana: já sabemos muito bem o que vai acontecer (a desgraça cósmica, o pescoço decepado), mas o protagonista ignora-o. E, como habitamos a consciência de Cromwell, também como ele não podemos deixar de acalentar esperanças – quem sabe o destino reconsidera? Quem sabe as Parcas amarelam? E zás: roemos as unhas até os cotovelos.

EU: Como é passar mais de um ano se imaginando a circular por cinco séculos atrás?

HM: Ah, eu me sentia em casa. Fechava os olhos e ouvia as badaladas dos sinos da igreja, ou o estrondo de uma trovoada. Ou num campo de batalha, ressoando os tiros de canhão. Nossos sentidos vão se moldando ao que escrevemos.

Por sinal, se Mantel tira de letra a ficção histórica (já havia acertado na veia em A place of greater safety, um épico sobre a Revolução Francesa), também vende esplendidamente seu peixe no romance contemporâneo, como em Beyond black, uma espécie de road novel na Inglaterra de hoje.

Neste retrato em 3D sobre os Tudor (Elizabeth, filha de Henrique VIII e Ana Bolena e talvez a suprema monarca da história inglesa, assoma na pontinha do pé), a efígie literária de Thomas Cromwell assume uma escala ciclópica – mas também jururu e até trágica. Um sujeito versátil como um canivete suíço: rascunhava contratos, adestrava falcões, desenhava mapas, apaziguava arruaças, mobiliava casas e selecionava júris (com a sentença no bolso do colete). Não se reduz ao gélido burocrata pintado por Hans Holbein, o Jovem, como a autora insinua ironicamente: “Quando viu o retrato pronto, ele disse, ?Jesus, eu pareço um assassino’, e seu filho Gregory comentou, não sabia disso?” (tradução de Heloísa Mourão, ed. Record)

Houve quem estabelecesse analogias entre Cromwell e os chefes das polícias secretas soviéticas, de Dzerjinsky a Beria, passando por Yagoda, e com o lúgubre totalitário O’Brien, do 1984 de George Orwell. Mas é preciso ter cuidado com os anacronismos – precauções que Mantel observou escrupulosamente, coando o eterno do moderno. Assim, seu protagonista é tão prismático que até se arvora em sex symbol: o tipo de homem que as mulheres querem ter e os homens querem ser. Com a palavra, o próprio: “Eu sempre fui o primeiro a levantar pela manhã. Sempre fui o último a ir deitar. Eu estava sempre onde estava o dinheiro. Sempre conquistava as garotas. Mostre-me um monte, e eu já estarei lá em cima, no topo.

EU: Que aspectos da personalidade de Cromwell mais a atraem e mais a repelem?

HM: Identifico-me com a ambição dele. Quando era criança, queria muito ser alguém. Não necessariamente escritora. Mas realizar algo substantivo e me afastar das minhas origens. Ansiava por concretizar o meu potencial. Não me identifico com a aptidão dele para ignorar opiniões alheias. Como muitos outros escritores, não consigo me desligar do que as pessoas falam, pensam ou sentem. Cromwell, não. Era blindado. Habitava uma armadura. E invejo isso: a vida fica bem mais fácil com uma pele dura.

Uma dica: não é preciso ter lido o primeiro volume para curtir O livro de Henrique. Só atrapalha um pouco a mania da autora de chamar os trocentos personagens apenas pelo primeiro nome – Henrique, Thomas, Ana, Jane. Mas, amavelmente, Mantel fornece o catálogo de todos eles (dramatis personae), divididos em categorias: “A Casa Cromwell”, “A Família do Rei”, “A Casa Seymour” (da sucessora de Ana Bolena, Jane Seymour) etc.

EU: O terceiro livro está dando mais ou menos trabalho que os outros dois? Já sabe como a trilogia acaba?

HM: Mais, bem mais trabalho. É de composição mais árdua, pois tem de integrar os anteriores. Intitula-se O espelho e a luz, precisamente porque iluminará tudo o que foi contado antes. O passado atrás de nós vai mudando, não é estático. Sei para onde o desenlace se dirige, mas tento refrear a precipitação. Este projeto é o âmago da minha vida de escritora.

Portanto, anotem aí: O espelho e a luz. A propósito, alguns críticos ingleses especularam sobre a pertinência de se conceder dois Booker Prize ao que, afinal de contas, é uma única obra dividida em três seções. Mas querem saber? Na minha opinião, Hilary Mantel já é barbada para o tri.

* Paulo Nogueira é escritor e crítico, autor do romance O amor é um lugar comum.

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