Paolo e Vittorio Taviani, diretores de César deve morrer
O texto a seguir é um recorte realizado pelo coordenador de cinema do IMS, José Carlos Avellar, da entrevista cedida pelos irmãos Taviani durante o Festival de Berlim, em 2012, sobre o filme César deve morrer, em cartaz no IMS-RJ.
Tudo aconteceu por acidente, como em Pai patrão, que começou depois do nosso encontro com o linguista Gavino Ledda, filho de um pastor da Sardenha. Desta vez – graças a um telefonema de uma amiga – entramos em contato com um universo que só conhecíamos através dos filmes norte-americanos, o presídio, embora a Rebibbia, a prisão nos arredores de Roma, seja bem diferente daquelas que vimos nas telas. Na nossa primeira visita, a atmosfera pesada de uma vida atrás das grades deu lugar à energia e ao frenesi de um evento cultural e poético: depois de passar por um sem número de portões e áreas de isolamento, chegamos num palco onde cerca de 20 detentos recitavam cantos do Inferno de A divina comédia de Dante.
Depois descobrimos que eles eram presos da ala de alta segurança, a maioria ligados a diferentes tipos de organizações criminosas – Máfia, Camorra, Ndrangheta – e, na maior parte dos casos, condenados a prisão perpétua. Sua atuação instintiva foi dinamizada pela ânsia dramática de contar a verdade, canalizada pelo trabalho firme e contínuo do diretor “encarcerado” Fabio Cavalli.
Quando saímos de Rebibbia, imediatamente nos demos conta de que gostaríamos de saber mais sobre eles e sua situação, então fizemos uma segunda visita e perguntamos se eles gostariam de trabalhar numa adaptação cinematográfica de Júlio César de William Shakespeare.
A resposta de Fabio e dos presos foi direta e imediata: “Vamos começar agora!”
Para sermos mais precisos: os atores que você vê no nosso filme são todos detentos da ala de alta segurança, mas queremos acrescentar que Salvatore “Zazà” Striano – que faz o personagem Brutus – já cumpriu sua sentença na prisão de Rebibbia. Ele foi inicialmente condenado a 14 anos e oito meses, cumpriu seis anos e dez meses e teve sua pena reduzida, sendo agora um cidadão livre. O único “estrangeiro” é um dos professores de atuação da cadeia, Maurilio Giaffreda.
Nós adotamos um método bem simples: pedimos para os atores se identificarem como se estivessem sendo interrogados por um agente; depois pedimos para se despedirem de alguém, demonstrando dor na primeira vez e raiva na segunda.
Nesse caso, nós tivemos uma espécie de pré-escalação com Fabio Cavalli, que nos mostrou fotografias de alguns detentos que já tinha pré-selecionado e que acabaram sendo escalados depois sem muito trabalho. Quanto aos demais, durante as audições, nós dizíamos que, por fins de privacidade, se eles quisessem, poderiam nos dar nomes falsos. Ficamos muito impressionados quando todos insistiram em nos dizer seus nomes verdadeiros, os nomes de seus pais e as cidades onde nasceram. Depois de um tempo, chegamos à conclusão de que o filme poderia ser uma forma de lembrar a todas as pessoas que moram do lado de fora que eles estavam vivendo suas vidas no silêncio da prisão.
Foi só depois de vê-los dirigindo-se para frente da câmera, um por um, que pudemos conhecê-los e descobrir sua verdadeira natureza ferida, violentada e enfurecida.
Escrevemos um roteiro, como fazemos em todos os nossos filmes. Depois, é sempre assim, uma vez no set, a câmera rodando e os atores representando, o roteiro se tornou uma coisa diferente – graças também às locações, à iluminação e também à falta de luz.
Com todo o respeito por Shakespeare (que sempre foi um pai, um irmão e depois – conforme envelhecemos – um filho para nós), pegamos o Júlio César dele, desmontamos e reconstruímos. É claro, mantivemos o espírito da tragédia original, assim como a narrativa, mas, ao mesmo tempo, a simplificamos, tirando-a um pouco do ritmo do trabalho de um palco tradicional. Tentamos construir o organismo audiovisual a que chamamos de filme, filho degenerado de todas as artes que antecederam o cinema. Um filho degenerado que com certeza Shakespeare teria amado! Fabio Cavalli foi extremamente generoso ao traduzir os diálogos para as gírias dos dialetos dos detentos-atores. Eles entenderam o que nós queríamos fazer e nos deram performances impressionantes com diferentes graus de emoção e envolvimento. Graças a eles, às várias verdades que eles expressaram e às atuações inesperadas, o roteiro evoluiu.
Vamos dar um exemplo, só para esclarecer mais: o adivinho, o “Pazzariello” napolitano que leva a palma aberta até o nariz e faz uns gestos inquietantes para que a plateia fique em silêncio, não estava no roteiro. No entanto, ele nos lembrou uma das muitas personagens loucas de Shakespeare, um Yorick, por exemplo, que tivesse fugido de uma de suas tragédias. Foi quase um tributo e um desejo de termos todos aquela genialidade.
A escolha de Júlio César de Shakespeare veio por necessidade: os homens com quem queríamos trabalhar tinham um passado – recente ou distante – com o qual queriam se reconciliar; um passado caracterizado por transgressões, erros, delitos, crimes e relações destruídas. Portanto, tínhamos que confrontá-los com uma história igualmente poderosa que caminhasse na direção oposta. E, nesta versão cinematográfica italiana de Júlio César, trazemos para a tela as relações grandiosas e lamentáveis entre seres humanos, e isso inclui amizade, traição, poder, liberdade e dúvida.
E assassinato também. Vários dos nossos detentos-atores eram “homens de honra”; e, em sua acusação, Antonio cita os “homens de honra”. No dia em que filmamos a sequência do assassinato de César, pedimos para nossos atores, armados com adagas, encontrarem o mesmo instinto assassino dentro deles. Um segundo depois, percebemos o que tínhamos acabado de dizer e queríamos poder retirar nossas palavras. Mas isso não foi necessário, porque eles foram os primeiros a reconhecer a necessidade de encarar a realidade.
Como resultado, resolvemos acompanhar seus dias e noites extremamente longos. Queríamos que o nosso trabalho se desse nas celas minúsculas, nos corredores e no pátio onde eles passam o único tempo ao ar livre, ou enquanto esperam pelas visitas dos parentes.
Para lhe dar uma ideia da nossa cooperação e do entusiasmo de Fabio Calli, vou lhe contar o que ele nos disse quando conversamos sobre o filme pela primeira vez: “Nós podemos filmar a sequência da Batalha de Filipos no campo atrás da prisão, podemos pedir para o diretor deixar os presos participarem…”
Mas, esse não era o ponto de vista que nós queríamos adotar no filme, Fabio entendeu nossa abordagem imediatamente e a aceitou, graças à sua sensibilidade intelectual e ao seu profundo conhecimento do show business.
Nós descrevemos como queríamos construir o enredo e Fabio colaborou conosco durante a escrita do roteiro; ele nos ajudou a descobrir alguns dos lugares mais secretos da prisão, a organizar reuniões com os detentos, selecionando os mais indicados para alguns papéis.
Antes de fecharmos o elenco final, ele tentou encenar algumas das sequências com um grupo seleto de detentos, mas, acima de tudo, com a ajuda de seu assistente, ele se concentrou na encenação das sequências finais. Numa fase posterior, ele nos mostrou um esboço do cenário com duas colunas romanas feitas de fibra de vidro colorida, como os escudos dos soldados.
E, por fim, ele deu o grande salto: desistiu de seu papel como diretor e tornou-se um ator interpretando o importante papel do diretor de teatro no filme. Sua performance foi excelente… Até porque seus atores estavam assistindo! Fabio disse para eles: “Até hoje eu fui o seu diretor de teatro; agora vamos passar para o cinema e usar uma linguagem totalmente diferente. Então, dessa vez, eles vão nos dirigir.”
Quando encerramos a produção, saímos nervosos da prisão, nos perguntando se, na verdade, o Fabio não tinha o sonho secreto de sair também e trabalhar nos teatros do “mundo livre”.
Mas ficamos sabendo que ele voltou para Rebibbia, para o convívio com seus detentos-atores, para montar a versão original de Júlio César. “A cena mais bonita” – ele nos contou com um sorriso desafiador – é a cena em que Brutus está frente a frente com Calpúrnia.” Nós eliminamos essa cena porque tínhamos um elenco exclusivamente de homens.
Nos meses anteriores à filmagem, íamos com frequência para Rebibbia. Cruzávamos as diferentes alas de alta segurança e, através das portas semicerradas, víamos os detentos deitados silenciosamente em suas camas. Eles nos diziam que deviam ser chamados de “os observadores de tetos”, já que passavam os dias deitados, olhando para o teto. Mas, numa manhã em particular, numa cela maior, descobrimos uma coisa que nos fez rir de espanto e cumplicidade: seis ou sete presos sentados ao redor de uma mesa lendo um texto. O texto era o nosso roteiro, aqueles homens eram nossos atores e estavam traduzindo as falas para seus respectivos dialetos (napolitano, siciliano, apuliano) com a ajuda de outros colegas que não eram do elenco do filme. Então, todo o trabalho foi supervisionado e coordenado – como sempre – pelo Fabio Cavalli e por Cosimo Rega (que interpreta Cássio).
Mesmo antes disso, ao assistir aos testes deles, ficamos muito felizes e surpresos em ouvir Próspero e Ariel discutindo em napolitano ou Romeu e Polônio sussurrando, gritando e xingando em siciliano ou apuliano? Nós percebemos que a pronúncia errada dos dialetos não diminuía o tom da tragédia, pelo contrário, emprestava às falas uma nova verdade. Ouvíamos as falas com uma consciência mais profunda. Os detentos-atores e seus personagens encontraram uma conexão mais íntima através de uma língua em comum e seguiram com maior facilidade até o desfecho da trama. Shakespeare sempre teve um lado popular. Então, não fomos nós quem decidimos usar os dialetos, foram nossos atores que se apoderaram do roteiro e o adaptaram às suas respectivas naturezas.
O filme foi todo rodado em Rebibbia. Passamos quatro semanas lá: chegávamos de manhã e saíamos à noite, exaustos, mas felizes e satisfeitos. Um dia, dissemos para nós mesmos: “Estamos filmando com a mesma ousadia e a mesma impulsividade dos nossos primeiros filmes”.
Quanto à câmera, nos deram liberdade para levá-la a todos os lugares: nas alas, nas escadas, nos cubículos, no pátio, nas celas e na biblioteca. Só havia uma exceção: a área de acesso proibido onde ficam os prisioneiros confinados em solitárias. Ninguém pode ver seus rostos, nem nós. Do lado de fora, um guarda nos mostrava as janelas das celas dos “vira-casacas”, que ficavam imersas em silêncio profundo.
Nós só interrompíamos as filmagens quando os presos de outras alas tinham que passar pelos corredores para irem até o pátio ou para os chuveiros, ou quando nossos atores tinham visitas de parentes. Quando eles voltavam, sempre estavam profundamente emocionados, tocados, entristecidos ou atormentados. Eles voltavam a atuar, mas seus olhares ficavam distantes, eles perdiam a espontaneidade crua e ingênua de sua atuação.
Um set de filmagens é um lugar onde brotam a amizade e a cumplicidade, e esse filme não foi exceção. Um dos guardas murmurou para nós: “Não fiquem muito íntimos deles; eu tenho relações excelentes com eles, e às vezes também sinto uma ponta de pena, compaixão, até amizade? Mas depois tenho que me lembrar de manter uma distância e pensar naqueles que sofreram e sofrem mais do que eles: as vítimas de seus crimes e suas famílias?”.
Isso é verdade, mas, mesmo assim, quando as filmagens acabaram e deixamos a prisão e os nossos atores, foi uma despedida dolorosa. Subindo as escadas de volta para sua cela, Cosimo Rega – que interpreta Cássio – levantou os braços e gritou: “Paolo, Vittorio: a partir de amanhã, nada mais será o mesmo!”.
A cor é realista, o preto e branco é ilusório. Pode parecer uma afirmação autoritária, mas, pelo menos nesse filme, isso é verdade. Quando chegamos à prisão, sentimos que havia o risco de cairmos no naturalismo da TV e fugimos disso usando o preto e branco, que nos deu mais liberdade para criar e filmar num cenário absurdo como a prisão. Usando o preto e branco, nos sentimos mais livres para filmar numa cela onde Brutus repete com sofrimento e paixão seu monólogo: “César deve morrer”. Nós optamos por imagens fortes e violentas em preto e branco que, no final, ganham cores mágicas no palco, enaltecendo a alegria furiosa dos detentos impressionados com seu sucesso.
Os detentos voltam para suas celas. Até Cássio, um dos personagens principais, um dos melhores. Ele está na prisão há muito tempo, mas esta noite a cela parece diferente, hostil. Ele fica parado. Depois vira-se, olha para a câmera e nos diz: “Desde que eu conheci a arte, essa cela virou uma prisão”.