O assassino político

Cinema

09.12.12

Quando um cineasta decide rodar um filme sobre um assassino de aluguel, ele está inscrevendo sua obra, inevitavelmente, num gênero (ou, ao menos, subgênero do cinema policial) de convenções muito estabelecidas. O assassino de aluguel, o mercenário, o ronin, seja ele membro da máfia ou freelancer, é um arquétipo do cinema – ou, em uma leitura reducionista, um estereótipo.

Um dos modelos mais clássicos da figura do assassino está em O samurai (1967), de Jean-Pierre Melville, no qual Alain Delon vive um sujeito radicalmente solitário e metódico, um homem misterioso de poucas palavras. O samurai não é o primeiro filme do gênero, mas é um dos mais influentes – é difícil não lembrar do personagem de Delon ao assistir aos recentes Drive, com Ryan Gosling, ou Um homem misterioso, com George Clooney. Ambos apresentam sujeitos deslocados da sociedade, incapazes de manter relacionamentos, sejam de amizade ou amorosos. O lugar-comum da língua portuguesa “frio e calculista” parece moldado para esses personagens.

As rupturas desse estereótipo muitas vezes se dão nas comédias: Sr. e Sra. SmithTrue Lies têm assassinos vivendo uma “vida dupla”, com família feliz e tudo mais; O procurado se vale do absurdo, com um protagonista capaz de curvar balas, o que rende cenas de ação inverossímeis; O matador apresenta um hilário Pierce Brosnan com bigode de Freddie Mercury e problemas sexuais e emocionais ligados à sua carreira de assassino.

Para mim, os melhores filmes de assassinos não são aqueles que necessariamente oferecem uma quebra do estereótipo do personagem, mas os que constroem uma estilização extrema da profissão: Anjos caídos, de Wong Kar-Wai, com um matador cool de óculos escuros que se desloca por cenários urbanos desoladores (apesar de muito coloridos), e o sul-coreano A bittersweet life, de Jee-Woon Kim, elegante e melancólico como os melhores filmes de vingança feitos na Coréia do Sul.

O homem da máfia, que estreou na sexta-feira passada em São Paulo, surge como um filme que parece estar muito consciente de todos os outros filmes de assassinos, e que busca encontrar um lugar único no gênero de duas formas: pelo estilo e pela inserção de um fortíssimo subtexto político.

Dirigido por Andrew Dominik, O homem da máfia apresenta muitos tiques visuais similares ao filme anterior do cineasta, o faroeste O assassinato de Jesse James pelo covarde Robert Ford: efeitos curiosos que desfocam a imagem, uso de uma lente grande angular tão curva que dá a impressão de que vemos a cena por um olho mágico, posicionamento incomum de câmera (em O homem da máfia, há uma cena em que a câmera está presa a uma porta de carro que é aberta). Todavia, em Jesse James, essas peculiaridades pareciam mais orgânicas, enquanto em O homem da máfia às vezes dão a impressão de serem supérfluas, adornos desnecessários.

Outra coisa que soava natural em Jesse James era a trilha sonora, carregada pelo dramático violino de Warren Ellis. O homem da máfia, por sua vez, deve ser o filme com as escolhas de trilha mais óbvias da história. Quando dois personagens vão usar heroína, começa a tocar “Heroin”, de Velvet Underground. Quando Jackie, o assassino interpretado por Brad Pitt, aparece em cena pela primeira vez, escutamos “When the man comes around”, de Johnny Cash, criando uma rápida associação entre o personagem e a figura mitológica da Morte.

http://www.youtube.com/watch?v=a09x9hCt1E0

Tiques e obviedades à parte, O homem da máfia é cuidadoso na construção de tensão, e Andrew Dominik tem um olhar muito particular para filmar a noite na cidade, achatando as luzes dos postes e revelando uma noite desesperadora de tão escura. O som também merece atenção especial, na alternância entre ruído e silêncio, e nas cenas de diálogo, nas quais os menores barulhos – como estalos de língua – são ouvidos em alto volume. A performance de Brad Pitt é uma surpresa positiva, oferecendo uma mescla calculada de cinismo, tristeza e humor. Trata-se de um assassino que gosta de conversar e exibe uma doçura em sua voz. Como o modelo clássico do assassino de aluguel, Jackie não gosta de emoções, mas é dotado de uma frieza carinhosa. Como sugere o título em inglês, ele gosta de “kill them softly”, matar suavemente.

A trama se passa às vésperas da eleição de Obama, em 2008, ou seja, durante a crise econômica que abalou os Estados Unidos. O subtexto político é inserido na trama a golpes de martelo: por onde passam os personagens, sempre há um rádio ou uma televisão passando um discurso de Bush ou um debate entre McCain e Obama. Todos os personagens discutem questões financeiras mencionando a “recessão”, a “crise” e os “tempos difíceis”. Os discursos de Obama são frequentemente ironizados, culminando na cena final de O homem da máfia, que se passa durante a vitória do presidente negro. É ali que Jackie verbaliza sua visão de mundo – e é nesse momento que o filme joga qualquer sutileza pela janela, gerando um dos finais mais constrangedores de que tenho memória.

Não há nada de errado em usar uma obra de arte como meio de discussão política – há apenas maneiras elegantes ou toscas de fazer isso. É uma pena que, ao final, O homem da máfia opte pelo caminho da obviedade, da explicação excessiva. Isso não significa que o filme, em si, adote uma postura ideológica clara, ou mesmo que o personagem do assassino simbolize uma posição republicana ou democrata. Jackie representa a desilusão política completa, a falta de esperança. Enquanto Obama, na televisão, vende-se como “a mudança”, enquanto o povo grita “Yes we can”, o assassino Jackie está ali, mostrando que nada mudará, pelo menos no plano moral, e a moral está mais ligada à economia do que se pensa. Um personagem instigante e curioso como o visual do filme; é uma pena que o diretor achou que a platéia não reconheceria isso sem jogar tudo na cara do espectador.

* Antônio Xerxenesky é redator do site do IMS.

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