É difícil me livrar de certa sensação de culpa nos primeiros dias de férias: não tenho mesmo horário? Nada de sair correndo? Posso mesmo me espichar na poltrona e ler um livro sem pensar em nada para fazer depois?
Felizmente a estranheza não costuma durar, e, dessa vez, logo entrei no mundo do cassino da cidade fictícia de Roletenburgo, onde se passa a ação de Um jogador, de Dostoiévski. Não me lembro de, durante uma leitura, ter dado risadas com tanto gosto como ao ler a chegada de Antonida Vassílievna, uma avó de 75 anos, proprietária rural moscovita, a um hotel de Roletenburgo onde se hospedavam estrangeiros, entre os quais russos, para se aventurar no jogo. Ali estava um sobrinho dessa senhora, que, sabendo da doença da tia, quando ela ainda estava em Moscou, telegrafava insistentemente a parentes, na esperança de receber notícia de sua morte. Pois no capítulo IX do livro, o leitor depara com a surpreendente chegada da avó ao hotel. Longe de ser a moribunda, ela entra, triunfante, na sua cadeira de rodas:
– Bem, aqui estou eu, em lugar do telegrama! – explodiu, finalmente, a avó, rompendo o silêncio. – Então, não me esperavam?
– Antonida Vassílievna… titia… mas, de que modo… – murmurou o infeliz general.
Se a avó passasse mais alguns segundos sem falar, ele teria, provavelmente, um ataque.
– O quê? De que modo? Sentei-me no trem e viajei. Para que existem, então, as estradas de ferro? E vocês já estavam pensando que eu tinha esticado as canelas e lhes deixara a herança? Bem que eu sei como estavas mandando telegramas daqui. Pagaste por eles uma fortuna, creio eu. Daqui, não é barato. E eu pus os pés nas costas e vim para cá.
Claro que o trecho reproduzido aqui ganha outro sabor no contexto do livro, depois que o leitor já conhece o magnífico perfil dessa avó que, de tão imponente, inspira o funcionário do hotel a lhe dar título de nobreza e anotar no livro: Madame La Générale, Princesse de Tarassiévitcheva.
Mas é no capítulo seguinte, quando a avó vai ao cassino, que ela é contaminada pelo vício. O buril de Dostoiévski nos transporta para a mesa de jogo, onde a senhora ganha desenfreadamente, apostando no zéro. Ela não arrisca além do zéro da sua sorte inicial. Acredita que o número lhe será sempre fiel e reage com a indignação própria da sua personalidade:
– Será que este zerinho amaldiçoado não sai nunca? Não quero mais viver, se não aparecer esse zéro.
Todo o traço da personalidade do jogador se desenvolve aqui: primeiro, as vitórias sucessivas, depois a compulsão de ganhar e, em seguida, o inconformismo de perder que a leva a incontroláveis tentativas e, finalmente, à ruína temporária…
Essa personagem tão fascinante me trouxe de volta uma outra, do mesmo gênero e não menos arrebatadora: Akulina Ivánovna, a avó materna de Górki, que ele descreve em Infância, o primeiro volume da sua trilogia de memórias. Não é autoritária e irônica como a de Um jogador. É firme e doce, e é imensa na sua generosidade, no seu senso de justiça, na sua graça e originalidade. Como personagem, é um monumento. Religiosa, tinha tal intimidade com Deus que nem chegava a ser irreverente quando o contestava: tratava-o de igual pra igual. Certa vez confessou a Aleksiei, o neto, quando falavam sobre justiça divina: “- E vai ver que nem mesmo Deus é capaz de sempre entender de quem é a culpa”.
Maksim Górki
Dizia isso com absoluta naturalidade. Górki a retrata como uma mulher “pesada feito um morro grande”. Mas ao mesmo tempo descreve uma dança que ela protagoniza, em que “toda ela ficou mais elegante, mais alta, e já era impossível desviar os olhos da sua figura – tão irresistível era a sua beleza e a sua graça naqueles minutos de milagroso retorno à juventude”.
A essa altura o leitor já percebeu que, fazendo citações, eu tive de esperar o fim das férias para chegar em casa, pegar o meu Infância para transcrever os trechos, entre os quais incluo esta maravilha de reflexão que faz a avó de Górki diante de baratas:
É que não entendo uma coisa: para que elas existem? Ficam rastejando para lá e para cá, pretas. O Senhor deu a cada corpo uma missão: um tatuzinho mostra que tem umidade na casa; um percevejo significa que as paredes estão sujas; um piolho ataca, quer dizer que alguém vai ficar doente, tudo dá para entender! Mas essas daí, quem sabe que força mora dentro delas, e por que são enviadas?
Infância foi escrito entre 1913 e 1914, e, em parte, a resposta ao questionamento da avó gorkiana seria dada 50 anos depois, quando uma moça, nascida na aldeia de Tchechelnik, Ucrânia, portanto não muito longe da família de Górki, que era de Níjni-Nóvgorod, viria para o Brasil e escreveria A paixão segundo GH, conferindo ao inseto o poder de lhe desencadear séria crise de identidade e criando uma das obras de maior prestígio da literatura brasileira.
Quando li Infância, há poucos anos, não descobri que avó em russo é bábushka ou babúlinka, e que em francês é babushka e baboulinka. Eu sinto a avó de Górki como baboulinka, que soa mais afetuoso do que babushka, para mim, a avó de Um jogador.
Só agora compreendi por que – a ignorância bem reserva surpresas boas – as bonecas de tamanhos diversos, souvenirs conhecidos – meus e de muita gente -, são chamadas de babushkas. Percebo que as avós russas são especialíssimas e escrevo aqui sem pesquisar o tema, mas desconfio seriamente que falar de avó russa é chover no molhado. Paciência, pra mim é novidade e estou encantada.
Devo confessar que sempre fiquei impressionadíssima quando ouvia escritores brasileiros ou estrangeiros dizerem, em entrevistas, que aos 20 anos de idade já tinham lido todos “os russos”. Pois eu só comecei as minhas leituras aos 50, o que, reconheço, é uma perda. Perda que venho sanando com delícia e com o privilégio de ter lido Dostoiévski na magnífica tradução de Crime e castigo feita por Paulo Bezerra, além de outras obras traduzidas por Rubens Figueiredo, como Infância, e Um jogador, do maravilhoso Boris Schnaiderman. Daí pra cá a paixão só vem aumentando. E ponho mais fogo nela escorada na afirmação de Autran Dourado no prefácio de Vida ociosa, de Godofredo Rangel. Diz ele que “os clássicos devem ser lidos no arrastado da velhice”.
Ainda não me reconheço nesse estágio da vida, mas a Prefeitura do Rio de Janeiro não quer saber dessas sutilezas. Já me forneceu aquele cartãozinho com o qual a gente entra no ônibus de graça. É ótimo, não se tem de pegar em dinheiro.
* Elvia Bezerra é coordenadora de Literatura do Instituto Moreira Salles.