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Sérgio, meu caro,
Eu conhecia de verbetes de enciclopédia algumas das informações sobre essa tua rica trajetória nos anos 60, mas nada como colher direto na fonte esse depoimento precioso.
Puxa, você esteve em Paris em maio de 68 e em Praga na primavera do “socialismo com rosto humano” – e voltou com essas coisas todas na cabeça para o sombrio Brasil dos generais. É sempre temerário fazer paralelos entre a obra de um artista e sua vida pessoal, ou deduzir aquela desta, mas não posso deixar de ver uma coerência profunda entre a tua vivência de experiências de liberdade e o caráter essencialmente libertário da tua literatura.
Nada a ver com uma literatura engajada, programática, mas justamente com o contrário, com a busca de um estado permanente de dúvida e de crise, de questionamento das certezas, tanto no plano político como no moral e no estético. O sentimento que teus contos, novelas e romances me passam – e que as tuas cartas e conversas confirmam – é a de uma liberdade extrema da imaginação, de uma abertura corajosa para o risco, para a aventura do espírito.
Sei que há muito trabalho, muita transpiração e muita competência técnica por trás desse fazer, mas a sensação que teus textos transmitem é a de que, tanto quanto o leitor, você está descobrindo as coisas, decifrando o mundo e especulando sobre ele, no momento mesmo em que escreve. As palavras não descrevem um mundo já pronto e acabado, mas como que o desvelam e o criam num mesmo movimento.
Um assunto que ficou quase ausente de nossas cartas anteriores é o cinema, e eu gostaria de lembrar aqui os filmes baseados em narrativas tuas. Salvo engano, são três longas-metragens: Bossa nova, do Bruno Barreto; Crime delicado, do Beto Brant; e Um romance de geração, do David França Mendes.
Dos três, o filme do Bruno Barreto é o que me parece mais distante, no espírito e na letra, do texto que o inspirou, o conto “Senhorita Simpson”. Do Crime delicado eu gosto bastante, até escrevi sobre ele, mas talvez a gente veja nele mais as preocupações do Beto Brant do que propriamente as tuas. Posso estar enganado.
Mas o filme que eu acho mais interessante dos três, no sentido de incorporar em sua própria fatura a hibridez do texto original, é Um romance de geração. Há ali uma estimulante mistura de teatro, cinema, literatura, ficção, documentário e depoimento pessoal. Penso que esse filme expressa de maneira feliz a tua postura aberta, experimental e sem cerimônia diante da criação literária – e artística de um modo geral.
As próprias falhas, os próprios erros, hesitações e correções de rota são incorporados na obra, que deixa de ser vista como um objeto acabado, venerando e intocável, para se apresentar como organismo vivo, pleno de surpresas e significados possíveis.
São incontáveis os escritores e artistas que eu admiro, mas poucos são os que me transmitem essa potência libertária, essa sensação de que o homem pode tudo o que sua fantasia for capaz de conceber.
Desculpe se caí no elogio rasgado, mas eu precisava aproveitar esta oportunidade privilegiada para te agradecer pelo imenso prazer que os teus livros me proporcionam.
Já espero ansioso pelo próximo.
Grande abraço,
Zé Geraldo
* Na imagem da home que ilustra este post: cena do filme Um romance de geração (2008), de David França Mendes