Pulsão de morte

Colunistas

11.05.16

 

Don DeLillo acaba de lançar um romance sobre a morte. O autor é um dos mestres da literatura americana pós-moderna e Zero K (Scribner, ainda sem tradução no Brasil) é uma alegoria da morte no capitalismo tardio.

É um tema que já tinha servido de pano de fundo para outros romances do autor, garantindo o peso de uma atmosfera conspiratória. Mas o que antes impregnava o mundo com o não-dito de uma presença espectral agora ganhou corpo e passou ao primeiro plano, como assunto explícito sobre o qual os personagens não param de pensar e falar.

A peculiaridade dessa parábola é dar à morte um tratamento material. “Não estamos falando de vida espiritual eterna”, o pai milionário lembra ao narrador, enquanto espera para se submeter a um processo criogênico que em princípio preservará seus tecidos para uma hipotética ressurreição no futuro, ao lado da mulher. ”Estamos falando do corpo.”

Zero K começa com o narrador de 34 anos voando para encontrar o pai e a madrasta, que sofre de uma doença degenerativa e vem sendo preparada para entrar em processo criogênico, num laboratório subterrâneo e secreto, construído com o dinheiro de benfeitores internacionais em algum lugar perdido do deserto do Cazaquistão. O pai do narrador é um desses benfeitores. O laboratório é comandado, como uma seita, por uma dupla improvável de irmãos escandinavos. É um lugar sinistro, hipervigiado. Lembra o quartel-general do gênio do crime num filme de 007 ou de Batman. Mas é a sério.

A criogenia está associada à cultura de massa no imaginário popular. É um tema recorrente das ficções científicas. Dizem que o corpo de Walt Disney foi submetido à criogenia, com vistas a uma ressurreição futura do inventor do Pato Donald. Nos romances de DeLillo, a cultura de massa é o substrato do mundo contemporâneo. É ela que o informa. O que mais fascina o autor é a relação perversa, de dependência, entre a massa e o indivíduo. As multidões em busca de um guia espiritual, convergindo para Meca, para as margens do Ganges ou para a sacada do Papa na praça da Basílica de São Pedro. Ao mesmo tempo que busca a salvação, projetando-se na figura de um líder, de um profeta, de um guru ou de uma celebridade, o indivíduo se dissolve na massa adoradora desse ícone. Não deixa de ser uma espécie de suicídio, de aniquilamento da identidade individual.

DeLillo tem um gosto especial por situações ritualísticas de sacrifício, de catástrofe ou de submissão coletiva, a exemplo da imagem assombrosa dos casamentos em massa celebrados pelo reverendo Moon, em Mao II. O matrimônio, um dos símbolos máximos da felicidade individual, é convertido em produção em série de casais formados por uma lógica superior, imposta ao indivíduo.

Em Zero K, os corpos enfileirados na câmara criogênica lembram “bailarinos sincronizados à maneira de um exército em marcha nas coreografias dos antigos musicais de Hollywood”. Nos corredores e nos quartos do centro de criogenia, volta e meia surge uma tela onde se projetam cenas de autoimolações, de epidemias, de desastres naturais etc. São ao mesmo tempo projeções e antecipações do imaginário do espectador: “Eles continuavam a vir, correndo, tentando escapar a um espetáculo horrível ou a uma ameaça estrondosa”, conta o narrador sobre um desses filmes-catástrofe.

A prosa de De Lillo tem uma assepsia clínica que aqui coincide com o ambiente gélido e aterrorizante desse centro sem janelas e sem perspectivas, onde as pessoas vêm morrer para renascer no futuro, mas sobretudo para escapar ao presente, com suas doenças, sua violência, seus desastres e catástrofes. Tentam escapar ao horror e à morte que as assombra, mas o processo ao qual se submetem mais parece um ritual suicida. Afinal, que estão procurando?

Em Para além do princípio do prazer, Freud fala de instintos que tentam restaurar um estado de coisas anterior à pressão perturbadora das forças externas, “a expressão de uma inércia inerente à vida orgânica”. É a “pulsão de morte”, a morte igualada à paz que os vivos buscam através de uma variedade de formas (meditação, nirvana etc).

Ao contrário, a imortalidade é a última fronteira dessa pressão perturbadora das forças externas e a última aquisição dos milionários no capitalismo tardio. O paradoxo da preservação dos corpos para além da morte ganha um novo sentido no processo criogênico. É uma impostura da “pulsão de morte”: como se, tentando evitar a morte, o indivíduo se adiantasse a ela e se submetesse a uma experiência científica que se confunde com um ritual sinistro que o esvazia de todo desejo, de toda autonomia individual e de toda vontade própria, para acabar reduzido a um corpo inerte, pendurado num gancho.

O milionário paga para se transformar em monumento e arauto de uma nova era. É diferente de perder a identidade e se dissolver na massa ou procurar outro estado de consciência, para se desprender da agitação do eu. O milionário paga para eternizar sua individualidade póstuma, nem que seja como imagem. Quer tomar o lugar do ícone adorado pela massa. Sua identidade foi reduzida à imagem de um corpo que não se decompõe. É o materialismo a se eternizar, desprendido do espírito.

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